quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

Os Silêncios e os Motivos

Naquele dia levantara apreensivo. Já sentia as palavras poucas em sua boca e em sua mente. Levantara afim de ficar um pouco longe de tudo. Estava precisando fazer uma visita ao seu mundo. Assim passaria o dia como uma figura tênue, flutuando acima de ações, palavras ou qualquer outra coisa que o pudesse aborrecer. Selou as pálpebras por um doce instante. Atrás delas ou de qualquer outro sussurro estava o Seu Mundo...
E retirou-se.
Da última vez que estivera ali lamentara a destruição do lugar, ficara triste e não conseguiu conter as lágrimas. Afinal, era o seu mundo que estava destruído, puído e esquecido. Mas agora estava satisfeito com a paz que o lugar tinha conseguido resgatar. A música tocava novamente, o jardim florescia de novo, havia vida nos bosques e nenhuma sombra pairava por ali, vindo sussurrar coisas que não quisesse ouvir, que não quisesse por desventura lembrar.
Adentrou a Cabana Além da Lenda, olhou em volta. Manuela não estava, porém tudo estava bem. O cheiro de livros pairava, como de seu gosto, achas de madeira ardiam no fogo aconchegante e tremeluzente na lareira. Lá fora estava uma noite enluarada, mas o lugar o chamava para um bom descanço. Aconchegou-se a velha poltrona, dispensou os livros ao menos por aquele instante. Quis dormir um sono quieto, mas não foi assim. Empertigou-se, assustou-se e num sobressalto abriu os olhos antes de ver algo que não queria ver. Olhou pela janela, viu o círculo em volta da Lua e inevitavelmente pensou que havia algum problema por perto.
Acendeu o candeeiro próximo e ficou pensando no que poderia vir a acontecer. Pela sua mente correram diversos fatos, diversas coisas que estivera passando nos últimos tempos. Há algum tempo não parava para pensar... Estava optando por fazer muitas coisas para que não pensasse em algo que o entristecesse. Lembrara de certo pacto, de um certo silêncio que estava escondendo logo abaixo de seu travesseiro. E calou sua própria mente com força. Não queria, nem podia lembrar daquilo.
Mas algo o incomodava, algo o chamava, sussurrava. E ele sabia que aquilo estava perto,que se movimentava lenta e estranhamente pela sua memória. Sentiu frio, medo até. Curvou-se para apanhar o cobertor e então algo reluziu um pouco ao lado, escondido pela fuligem da lareira. Era um velho papel, amarelado, um pouco chamuscado, mas ainda mantendo as mesmas letras vivas e prateadas que já há algum tempo ele mesmo havia escrito. E então leu, mas baixinho, para que a magia do momento não se perdesse:

"Um dia desses eu separo um tempinho e ponho em dia todos os choros que não tenho tido tempo de chorar."

Sua primeira reação foi fechar o punho com força e lançar com desprezo o papel nas chamas, que chiou, contorceu-se e desfez-se em cinzas. Aquilo doeu-lhe um pouco. Naquele momento ele ouviu passos, leves, mágicos, élficos. Já sabia quem era. Mas deixou que ela enfim falasse:

- Já não lhe pedi para que você não haja como um surdo? 
Ela indagou com sutil reprovação e uma nova atenção em seu tom, como se estivesse preparada para qualquer coisa que porventura pudesse acontecer. Não sabia, mas também sentia uma preocupação latente, algo que se movia cristalino e salgado e que se espalhavam pelas pálpebras dele.
- Eu precisava, Manuela, precisava ir embora, precisava esquecer.
- Mas ainda assim se lembra com todas as suas forças, com todos os seus pesares. Os de ontem e os de hoje.
Ele apenas se curvou, e deitou-se como sempre fazia para ouvi-la.
- Eu quero ver. Quero acabar com isso, quero que tudo seja logo arrancado de uma vez.
- Você sabe o que está fazendo?
- Você sabe que eu ouvi os rumores, sabe que de onde vim há sempre palavras pesarosas que grudam nos outros. Nada vai ser surpresa para mim.
- Confesso que concordo com você, confesso que também queria que você não ouvisse. Calar-se é uma arte possível, mas deixar de ouvir...
- Mostre-me. - Ele a interrompeu.

Ela simplesmente segurou sua mão e ele encolheu-se de dor, sentiu um arrepio e devolveu com força o aperto de mão. E então ele ouviu risos, viu dias ensolarados, música e sentiu um cheiro tão doce que o fez nausear. Via tudo de longe, como se fosse algo tênue, como se fosse um pedaço do passado. Mas no meio de tudo aquilo, mesmo com uma dor lancinante em seu coração, não estava triste. Entendia agora. Nada daquilo era seu e não adiantava forçar. O seu tempo de silêncio gritava agora, chorava, rangia os dentes de ódio. Mas ele simplesmente deu as costas a ele. Poderia sentar-se e desesperar-se, mas via apenas as respostas para muito do que havia perguntado, para muitos de seus medos e receios. Sentiu algo formigar abaixo de seus pés. Foi então que percebeu que pisava em cristais. 
Se tentasse correr, se cortaria profundamente. Entendeu mais uma vez... Correr atrás daquilo era procurar a própria morte. Mas ainda tinha dúvidas do porque não doía olhar para aquilo tudo. E então lembrou-se de algo, de um certo pacto, de um certo alguém que em algum lugar longe dali, selara-se junto a ele nas mesmas convicções. A força vinha de ambos e os ajudava agora. E então fechou os olhos. Não precisava mais ver aquilo.
Apenas abriu-os novamente quando sentiu o peso da mão de Manuela nas suas. Sentou-se quieto, ainda sentia os pés formigarem. Olhou-a nos olhos. Nada disse. Ela então adiantou-se:
- Desta vez, até eu permito que faça...


E então chorou. Chorou por tudo o que foram. Por tudo o que não conseguiram ser. Por tudo o que se perdeu. Por terem se perdido. Pelo que queriam que fosse e não foi. Pela renúncia. Por valores não dados. Por erros cometidos. Acertos não comemorados. Palavras dissipadas. Versos brancos. Chorou pela guerra cotidiana. Pelas tentativas de sobrevivência. Pelos apelos de paz não atendidos. Pelo amor derramado. Pelo amor ofendido e aprisionado. Pelo amor perdido. Pelo respeito empoeirado em cima da estante. Pelo carinho esquecido junto das cartas envelhecidas no guarda-roupa. Pelos sonhos desafinados, estremecidos e adiados. Pela culpa. Toda a culpa. Dele. Dela. Culpa de ambos. Por tudo que foi e voou. E não volta mais, pois hoje já é outro dia. Chorou.


Levantou-se um pouco cambaleante e com a visão embaçada. Disse pra que ela não o ajudasse, voltaria sozinho para casa. Aprontou os pés na estrada. Se pôs a caminhar sob Lua e vento. Poderia estar triste naquele instante. Mas estava em paz, estava sorrindo e não se cortara correndo atrás de algo perdido. Estava orgulhoso. E mais uma vez apenas olhou ao redor, sentiu, aspirou... Não chorou. Sorriu sereno. "O que é certo virá na hora certa."



Ao som de "Fields Of Innocence", Evanescence.

1 pessoas se inspiraram:

Unknown disse...

Um rápido resumo: Tudo oq é bom dura pouco, e tudo oq é ruim chega rápido aos nossos ouvidos! triste realidade