sábado, 5 de fevereiro de 2011

Não Falo


Ainda não tinha se acostumado. Perto da porta as caixas ainda se acumulavam, dificultando a passagem. Livros, louças, roupas, tudo ainda encaixotado. Pareciam agora  massas grandes e negras que se avolumavam abruptamente  na escuridão entrecortada pelas vidraças molhadas. Já na segunda noite na nova casa ficara sem energia. Típico. Não era um bairro dos mais conceituados, nem tinha a melhor assistência elétrica, mas foi o melhor preço que conseguiu. 
Tivera de interromper sua leitura diária dos poemas de Emily Dickinson, sua predileta. Era engraçado como as vezes o frio não parecia afetá-lo, mas ali naquela casa vazia e escura ele quis ter alguém mais para conversar, pra enfim acalorar alguns assuntos com uma boa taça de absinto. Mas contentou-se com uma caneca de capuccino que fumegava no escuro, esquentando a ponta de seu nariz e fazendo cócegas em seu buço.
Quis apenas dormir quando chegou, ainda nem examinara a casa direito. Mas sabia que era antiga, lar de alguma estranha família no passado. Bom, tendo rosas no jardim, gramado e um enorme Ipê no quintal isso o bastava. Era o suficiente para que sua inspiração fosse inflada. Ele pensava agora nas coisas que deixara para trás, nas coisas que ficaram inacabadas, se alguém notara sua ausência, se estava morto ou vivo. Prostrou-se diante da vidraça e empurrou-a com dedos lânguidos e esbranquiçados pelo contato forçado contra o vidro frio. Abriu-a com um barulho maior do pensara. Este ecoou pela rua na penumbra, deixando o hálito da noite entrar e fazer com que os dedos de seus pés se encolhessem. Olhou, analisou, esperou. Nada. Apenas um gato que procurava uma lixeira afortunada, uma coruja que piava preguiçosamente num poste ali perto e o farfalhar fantasmagórico das árvores que emolduravam os arredores da casa. O cheiro de rosas encheu o ar, trazendo algumas lembranças estranhas.
Tentou aquietar-se um pouco, afinal a energia não voltaria tão cedo. Voltaria a dormir, já que a luz do candeeiro nunca fora lá grande ajudante para as leituras na madrugada. Puxou a vidraça de volta ao seu posto, travou-a.  Caminhou pela casa como um fantasma, locomovendo-se tão delicadamente que nem fazia a madeira do assoalho ranger. Subiu a escada em espiral, observou a sala e o hall de entrada lá de cima. Apesar de velho, o pinho empregado no assoalho da casa ainda brilhava como novo. Naquele momento quis ter uma festa com bons amigos e rodas de piano e violão. 
Continuou a caminhar. Num quarto vazio um colchão puído estava posto bem no centro. Uma pilha de livros ao lado, um copo vazio, farelos de bolo e uma rosa delicada e rubra num copo. Não, definitivamente não estava com sono, afinal ainda nem passava das duas da manhã. Estendeu a mão para apanhar um livro qualquer na pilha ao lado. Mas seu pulso reclamou. Ele sinceramente não gostava de lembrar daquilo. Juntou os pulsos paralelamente e olhou mais uma vez, como fazia sempre antes de dormir. Eram agora dois sulcos arroxeados e  verticais que se estendiam por uma parte de seu antebraço. Sessavam abruptamente, perdendo-se nos sussurros da lâmina que causou aquilo. Ainda ardia um pouco, seu tendões não tinham se recuperado direito. Sim, ele estava disposto a acabar com sua vida. Estava.
Desenrolou as mangas de sua camiseta para que as cicatrizes não chamassem sua atenção novamente. Deitou-se de bruços e só aí parou para ler a capa antiga do livro. Tosca. Em letras prateadas e brutas estava escrito: 'FRÂNCES - PORTUGUÊS'. Já nem lembrava daquele dicionário velho e obsoleto, mas folheou um pouco. Observou as regras gramaticais, os fonemas e por alguns minutos recitou palavras em voz alta. E enfim seus olhos começaram a pesar de sono. E terminou por dormir, mais rápido do que pensara.
Mas o que lhe incomodava era o fato de sua mente trabalhar um pouco além da capacidade do sono. Não sabia como isso podia acontecer, mas lembrava-se de coisas inconscientemente. Não era como sonhar, porque tais coisas já tinham acontecido. E então pensou em como teria acontecido, teve dúvidas se era ele ou ela. Porém sabia em algum lugar de sua mente  que eram eles dois os responsáveis. Ele, ela e a natureza selvagem de ambos. As vezes sentia as sensações fugirem de seu controle, como se sequestradas por alguém mais forte, por algum sentimento mais pesado e palpável. Humano ao extremo. De um certo modo fora arrastado até aquele ponto de sua vida, mas fora até ali decididamente. Sim, era difícil de entender, mas ele as vezes sentia o fluir entre as pernas dela. E se comprazia da lembrança.
As vezes pensava quando aquilo iria parar, até onde chegaria. Francamente não sabia se um dia poderiam resolver tudo pelas próprias mãos ou se deixaria o destino vir até ele, para que desatasse nó por nó. Era cheio das artimanhas, fazia beicinho, erguia as sobrancelhas, cerrava os cílios, seduzia para ganhar as palavras que queria. Imprimia carinho em tudo o que falava, mas no farfalhar das folhas puídas do velho dicionário ouvia o balbuciar de suas poucas mentiras francesas: " Je ne parle pas français". Inconscientemente e de olhos bem fechados traduziu: "Eu não falo francês".

Não estranhou ainda estar frio pela manhã. A névoa vinda do jardim fez cócegas em seus dedos e então ele se sentou, grogue e cheirando a livro velho. A claridade que adentrava era acinzentada pelo céu pesado lá fora. Girou a cabeça preguiçosamente a olhar pelo quarto, e foi então que levou um susto que tirou-lhe o fôlego. Sentada ali, no canto do quarto ela o olhava complacentemente, cabelos negros caindo-lhe pelos ombros, molhados pela chuva lá fora. Ele sentou-se num pulo.
Ela sorriu e ergueu um copo de suco e empurrou um prato de bolinhos para ele. Fitou-o novamente e apenas disse:

C'est pour toi, mon amour!

Continua...

Ao som de "Ne Parle Pas", Agridoce.