segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

Recharge the battery, please.


"Uma conclusão, enfim!", era o que eu apenas queria postar aqui, sem delongas, sem mais demoras, sem mais enrolação. Porém, um fator que me impede de fazer isso é justamente a intensidade que se apresentou em tudo o que aconteceu nesse ano. 2012 definitivamente não foi um ano de melindres, bucolismo ou ineficiência. Foi, na verdade, muito intenso em cada detalhe e capricho que insistiu em realizar.
Nunca fui muito de fazer retrospectivas, até porque, em meus textos de fim de ano, sempre direcionei o foco às emoções que essa época do ano suscita. Mas esses doze meses merecem algo do gênero, ao menos para pontuar questões e resoluções que de algum modo estarão comigo daqui para frente de uma maneira muito intrínseca, ainda que - em partes - eu não queira.
É importante ressaltar que nós vimos que os Maias (felizmente) estavam errados e que esse período "pós-apocalíptico" não poderia ser menos propício para que procurássemos algo que conferisse um pouquinho a mais de significância para aquilo que prezamos, não importa qual a sua natureza.
Lembro que nos últimos dias de 2011, um amigo me disse que 2012 seria intenso e cheio, sem trégua para que parássemos e respirássemos. Algo que está entranhado na nossa relação e que de vez em quando quer dar essas olhadelas no futuro. Mas, realmente, findo a corrida só agora, esbaforido, já pensando na próxima.
Acho importante ressaltar também que foi um ano pesado. Pesadíssimo (reparem na ênfase). Do tipo de ano que te obriga a fazer preces para que ele acabe logo. Entretanto, em alguns estágios, trouxe coisas tão prazerosas que por um tempo significativo o fel dos dias pesados foi esquecido.
Minha vida acadêmica ganhou novos adornos que me deixaram muitíssimo satisfeito, embora ainda falte muita coisa e me ocorram neste momento vários erros que pretendo consertar e/ou sanar.
2012 me trouxe pessoas imprescindíveis, afastou muitas que já precisavam ir, me mostrou algumas que nem deveriam ter se aproximado, firmou laços e promoveu encontros e reencontros deveras significativos, mesmo que essa pareça uma análise superficial. Reproduzo aqui a iniciativa de uma pessoa que me diz que há que se importar com o saldo e, portanto, com aquilo que deu certo, mas com cautela para não cair nos erros que insistirão em deixar máculas.
Tentei prever muita coisa, em muitos momentos me preocupei muito mais com a intuitividade do que com a sensibilidade e isso deu origem a muitos equívocos e, consequentemente, decepções a curto prazo. Entretanto, a lição que tirei de tudo isso é que o imprevisível é, sem dúvidas, a melhor forma de aprender. É do que não nos é entregue em nossas mãos e nem posto em nosso caminho que é feita a nossa busca. Portanto, fechei os olhos para muitas coisas e sim, me sinto bem agora.
Neste ano eu fui (e continuo sendo) tio e padrinho da minha Maria Elisa, não fui a São Paulo nem ao Rio de Janeiro, não vi Florence Welch ao vivo, sacrifiquei meus estudos de violino (que mal começaram), quebrei mais dogmas do que pensei que quebraria algum dia na vida, amadureci significativamente no que se refere à questões familiares e acadêmicas, como dito antes.
Mas estou falando das coisas como se tudo tivesse sido concluído. Óbvio que muitas questões ficaram pela metade e para trás, e não é menos significativo o fato de que apostei em muitos projetos que não deram certo. Projetos esses de naturezas diversas. Entretanto, creio que a essa altura eu já compreenda que nem tudo está ao nosso alcance e que, de fato, é angustiante não ter controle sobre certas coisas, do mesmo modo que esperar que elas aconteçam é quase mais dispendioso. E então, no meio de todas essas turbulências, o que fazer? Não adianta, sempre soará como papo alto-ajuda, mas o que se deve fazer e o que eu creio que consegui (categoricamente falando), é: buscar o equilíbrio entre o caminho percorrido e a escuridão que às vezes parece apagar a estrada.
Portanto, meus caros, o que eu desejo à todos vocês nesse 2013 é solidez. Não uma solidez bruta, estagnada, que não permita reformulações. Entendamos que nada é imutável e que devemos sempre estar aptos às mudanças. A solidez que lhes desejo é aquela que confere força e resistência a instabilidade que insiste em nos assaltar. "Solidez para permanecermos coesos e íntegros, mesmo em meio às mais absurdas intempéries." (RAYMUNDO, Rafael Tourinho; 2011).

Desejo à todos um excelente 2013 repleto de aspirações, inspirações e realizações.
Muito obrigado pela companhia.

Ao som de "Youth", Daughter.

sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

Desapego


Os móveis escassos, antigos e metodicamente envernizados refletiram a luz azulada que repentinamente irradiou do display do pequeno gravador digital do investigador Thompson. A sala em penumbra parecia sibilar diversas coisas ininteligíveis naquele vazio e modorrento fim de tarde. O ranger das botas emborrachadas que se fazia ouvir todas as vezes em que o homenzarrão a frente de Christopher encarapitava-se na ponta da poltrona  já o irritava. Por alguns minutos, analisando a figura a sua frente, ele pensou com afinco na dificuldade que o investigador deveria ter de ser sutil, fator primordial em sua profissão.
Aquele homem era desproporcional. Ao sentar-se, afundando no estofado, suas calças subiram deixando a mostra boa parte de suas panturrilhas esbranquiçadas e estranhamente bem definidas. Seus cotovelos ossudos pareciam querer rasgar o sobretudo que por algum motivo desconhecido ele se recusou a tirar.  Vez ou outra anotava algumas deliberações e o jovem pôde perceber o quanto suas mãos eram velhas. Tão lânguidas quanto o resto de seu corpo, pareciam ser envolvidas por velhas e finas cordas arroxeadas e Christopher se perguntou se algum dia elas teriam tido viço e destreza. Tinha um rosto bonito, dadas as características desengonçadas de sua estrutura corporal; o cabelo era cortado baixo, bem rente e em linha reta, alternando-se em fios prateados e enegrecidos; tinha olhos complacentes, apesar de toda a dureza que parecia ostentar. Olhos verdes e complacentes.
As covas sombreadas de seu rosto davam a impressão de sempre esconder palavras ou um sorriso abrasador. Christopher chegou à conclusão de que o investigador a sua frente devia seu status em sua profissão à sua aparência, mas não era nada do que aparentava. Lendo-o mentalmente, o jovem entendeu que ele era fruto de diversas circunstâncias desastrosas e que o seu ofício tornara tudo natural para ele, privando-o de novas surpresas desagradáveis para o resto da vida. Decidiu então naquele momento que colaboraria com tudo, sem pestanejar. Thompson tinha adquirido sua confiança.
Emilie e Konstantine decidiram resolver pormenores, como o pagamento das diárias no hotel não muito longe dali, o recolhimento de suas roupas na lavanderia e quem sabe até um chocolate quente no caminho, pois sabiam que o interrogatório seria longo. Naquele momento uma coceirinha começou a aparecer em seus âmagos e elas sabiam que apesar de longa e possivelmente enfadonha, a conversa revelaria tantas coisas que o ar ficaria denso. Tão denso que poderiam parti-lo com uma adaga.

Na sala de estar as sombras se estendiam de modo vertiginoso pelos cantos e pelo assoalho e Christopher sentia-se cada vez mais incomodado com o silêncio que tinha se interposto entre ele e a figura intrépida a sua frente. O investigador curvou-se um pouco, de modo que um feixe de luz tardia e avermelhada pelos tons da nova noite iluminou suas retinas arbóreas e as fez brilhar momentaneamente. Em tons baixos e firmes, Thompson disse:
- Assim que estiver preparado, Senhor Christopher.
O jovem assustou-se um pouco com a segurança que aquele homem transmitia e disse, meneando a cabeça para um canto mais escuro, a fim de esconder sua expressão um pouco amedrontada:
- Tudo bem. – e completou – Só Christopher, – parando de forma insegura – por favor.
Uma caneca de mel quente fumegava diante do investigador e ele, impassível, apenas olhava algumas anotações e alternava uma nova entre um gole e outro. A cada vez que sorvia mais um pouco, suas sobrancelhas uniam-se, denotando certo esforço para que não queimasse a língua ou os lábios. Christopher entendeu que ele ficaria ali durante toda a madrugada, se preciso fosse.
E a noite avançou pelo recinto.
18h30min. Olhares dispersos, barulho irritante de páginas secas atritando uma contra a outra.
19h00min. O tênis de Christopher tamborilava e ele se esforçava para lembrar-se de algo, qualquer coisa que fosse e enfim se livrar da tortura que aquele momento estava representando.
19h20min. O investigador Thompson não apresentava impaciência alguma, mas dessa vez largara as anotações, jogando a surrada pasta de couro sintético no chão.
19h30min. Christopher passou a canalizar toda a sua atenção para o tic-tac do relógio que pendia a frente deles, sempre solitário na parede simples, de cor creme.
19h45min. Thompson agora se levantara e olhava o jardim já escuro e sem forma com expressão perdida e tranquila.
19h50min. Christopher não entendeu muito bem aquela sensação, mas seu cérebro parecia ter dado um giro. Sentiu-se tonto e um pouco desnorteado. Afundou-se um pouco mais na poltrona que rangeu alto às suas costas.
19h55min. Thompson voltou ao seu posto, sentou-se, mas sempre evitando olhar fixamente para o jovem a sua frente. Recolheu sua pasta e voltou a fazer anotações aleatórias.
19h58min. O relógio gritava nos tímpanos de Christopher. Suas minúsculas engrenagens e mecanismos pareciam tiquetaquear dentro de sua mente. Suas mãos agora apertavam o estofado da poltrona, deixando manchas escuras de suor no couro rachado e ressecado.
19h59min. O investigador percebeu a inquietação de Christopher, adiantou-se, preocupado. Ajoelhando-se e colocando a mão sobre o ombro do rapaz, Thompson o olhou nos olhos e disse, enfim quebrando o silêncio de duas horas e meia:
- Fique tranquilo, Christopher. Que quer que tenha acontecido, eu estou aqui para ouvir. A partir de agora esse lugar é uma espécie de forte, nada vai sair dessas paredes. E o melhor: esse lugar é seu. – disse o investigador em sentenças rápidas, de modo que nenhuma insegurança eventual pudesse preencher qualquer lacuna deixada por falta de atenção.
Respirando fundo, Christopher relaxou um pouco mais os músculos, mas de repente enrijeceu-se novamente levantando os pés a alguns centímetros do chão de linóleo.
20h00min. Nitidamente Christopher ouviu a voz de Sophie sussurrar em seu ouvido, com hálito doce e o tom jocoso de sempre, dizendo: “Vamos?”.
Quando um trovão rouco soou ao longe, Christopher segurou o antebraço do investigador Thompson e disse, de forma clara, firme e concisa:
- Eu me lembrei.

- Eu queria ser um besouro nesse momento para ouvir a conversa daqueles dois. – disse Konstantine forçando uma maturidade que ainda lhe faltava.
- Mas a expressão não diz “ser uma mosca”? – questionou Emilie de cenho franzido.
- Diz, mas eu acho moscas nojentas. E de qualquer forma um besouro também se adapta muito bem em todas aquelas frestas do chão da casa do Christopher. Aliás, que casa bonita aquela, não é mesmo? Como será que o Christopher conseguiu comprar ela por um preço tão baixo?
- É, isso eu também não entendi. A casa é grande, bonita e parece ter uma história notável. Isso é mais um mistério que ele vai precisar esclarecer pra gente.
Naquele instante uma lufada fria entrou pela cafeteria enroscando-se nos pés dos clientes e passantes. Um trovão rouco soou ao longe.
- Nossa, vai chover de novo. Como tem chovido nos últimos dias e eu adoro isso! – comemorou Konstantine levantando sua caneca para o céu.
- É porque a gente reencontrou o Christopher. Das coisas que me lembram do Christopher, a chuva vem em primeiro lugar.
- Verdade – concordou Konstantine. – A propósito, você sentiu a mesma coisa que eu? – acrescentou ela com o tom que sempre usava para disfarçar algo que a assustara um pouco.
- O perfume da Sophie? Senti. Nitidamente.
- Acho melhor a gente voltar para a casa do Christopher.
Pagando a conta apressadamente, ambas saíram trôpegas para a calçada a tempo de ver as luzes se apagando pela avenida. A queda de energia deixou tudo escuro, dando visão a um céu avermelhado e furioso.
As nuvens avolumavam-se ameaçadoramente e pareciam querer tragar tudo. Gradativamente o vento esfriava e os trovões ficavam mais próximos, alternados por relâmpagos que riscavam o céu e traziam o dia por alguns segundos, pintando tudo de um branco forte que parecia cegar momentaneamente e, além disso, a escuridão alternava-se com os farois dos carros que avançavam pela avenida. Um pequeno caos começava a se formar e Emilie e Konstantine sabiam que seria difícil conseguir um táxi agora. Mas, milagrosamente um se aproximou e elas correram abrindo caminho entre as gotas pesadas e negras que começavam a perfurar suas roupas, como contas geladas. Desprezaram a velhinha que se aproximava com um persa gordo e impassível entre as mãos, mas compadeceram-se e pediram para que ela entrasse. Talvez tivessem sorte e ela nem morasse tão longe da casa de Christopher.
O carro avançou em meio ao inferninho de farois aglomerados e pedestres em dúvida por conta do semáforo inútil que não tinha como funcionar sem energia.
- Vai ser uma tempestade e tanto – disse a velhinha com ar um tanto misterioso enquanto os olhos do persa preguiçoso e sonolento cintilavam no interior sombreado do carro.

Gregory Thompson nunca foi dado a irracionalidades ou mesmo misticismos, mas poderia jurar que sentia mais alguém naquela sala. Tentou captar movimentos mínimos, olhando de forma inexpressiva para que não denotasse credulidade ou até mesmo, na pior das hipóteses, medo. Observou Christopher com bastante atenção, focou-se nos mínimos detalhes de sua expressão e mostrou mais uma vez seu olhar abrasador na esperança de que isso desse uma ajuda extra nas memórias do jovem que no momento assumira, de fato, uma postura mais segura e um tanto aliviada.
Christopher lembrara-se de uma forma realmente inesperada, de acordo com todas as vezes em que tentou, por conta própria, remontar momentos de meses atrás, não obtendo sucesso algum. Naquele instante, muitas lacunas foram preenchidas dando lugar a pensamentos e lembranças claras de acontecimentos que não deveriam ter mergulhado tão fundo em seu subconsciente, mas que de alguma forma afundaram como pedras.
- Então me conte Christopher, conte-me. – pediu o investigador munido de caneta e papel, apoiando seu pé sobre o joelho e equilibrando os papeis sobre sua panturrilha.
- Me deixe falar tudo primeiro, Thompson. Por favor, não me interrompa. Não quero que nada disso fuja novamente de meu domínio.

Ansiosas, Emilie e Konstantine empertigavam-se no banco detrás do táxi, enquanto o carro avançava abrindo caminho pelo véu gelado que agora se estendia por toda a cidade. A vermelhidão no céu ficara um pouco mais branda, dando lugar a nuvens castanhas e chorosas, deslizando preguiçosamente. Ainda não conseguiam distinguir muito bem os traços da senhora que se sentara no banco da frente, mas tiveram a certeza de que ela era muito sábia simplesmente pelo seu tom de voz. Até o momento ela ainda não tinha se manifestado acerca de seu endereço e parecia não se importar muito com isso, afinal de contas era como se estivesse curtindo um passeio com velhas e saudosas conhecidas. Quando a rua da casa de Christopher se aproximou, Konstantine deixou escapar um suspiro de alívio ao avistar a casa imponente se erguer no escuro, alguns metros adiante. Reparou que apenas uma janela da casa deixava escapar uma luz bruxuleante, como se velas iluminassem o seu interior. Pensou então que a conversa ainda avançava e que não devia ter se desenrolado muito.
O táxi encostou-se ao meio fio, levantando bastante água que corria com força pela sarjeta. Quando enfim seguraram as cédulas nas mãos a fim de pagarem a devida quantia pela corrida e então se prepararem para correr ao velho e pesado portão, a senhora ao lado manifestou-se:
- Eu também descerei aqui, caro Jonathan. Ah, moças, dividiremos em partes iguais, tudo bem?
Ambas entreolharam-se e concordaram rapidamente sem se preocupar com o modo em que aquela senhora transitaria pelas calçadas sorrateiras abaixo da violenta tempestade. Preocuparam-se e decidiram ajudá-la, uma vez que não escapariam da água que preenchia todos os espaços disponíveis com ar fora do veículo. Pagando, as três saíram com receio da rua que se tornara um rio caudaloso, e quando deram a mão para ajudar a senhora, ela disse em tom sapiente:
- Vamos a minha casa, ela é aqui do outro lado da rua.
- Mas... – balbuciou Konstantine começando a protestar.
- Por favor, vocês sabem que ele está ocupado – pediu mais uma vez a senhora.
Emilie apenas concordou com o olhar e enfim decidiram segui-la para o outro lado da rua, equilibrando-se pelo asfalto que se tornara liso abaixo da corrente de água. O persa estava extremamente impaciente entre as mãos de sua dona e Konstantine se dipôs a levá-lo enquanto não chegavam à outra calçada. Finalmente chegando ao portão simples, a senhora procurou seu molho de chaves e destrancou a fechadura apressadamente.
- Entrem, depressa – aconselhou.
Emilie e Konstantine olharam para trás, curiosas e preocupadas, a tempo de ver a silhueta de Christopher projetada na cortina. Emilie conheceria de qualquer distância aquela posição que seu amigo assumia quando enfim controlava a desordem de algo: corpo ereto e a mão direita sobre o ombro esquerdo. Sorriu silenciosamente no escuro. Ele tinha se lembrado.

Christopher levantou-se, assumindo assim uma posição que dava a ele ar de triunfo e sabedoria. Dirigiu-se até a parede próxima com o corpo devidamente ereto e a mão direita pousada sobre o seu ombro esquerdo. Andou a passos medianos se movimentado pela sala como um fantasma numa casa antiga, cheia de sombras projetadas pelas velas chorosas nos castiçais simples e encostou-se a parede próxima. Ao seu lado uma grande janela dava vista às roseiras e dali ele conseguia distinguir poucas formas. Entretanto, avistou além do jardim, por entre as frestas do portão, um farol parar na chuva e ouviu vozes abafadas trazidas pelo vento e entrecortadas pelo som da tempestade. Esperou soar a campainha, mas as vozes cessaram e somente o som das gotas arranhando as vidraças voltou a reinar. Por alguns segundos teve a nítida sensação de que alguém o observava além do jardim, através da cerca viva. Alguém que o entendia perfeitamente.

Voltando sua atenção novamente ao interior do cômodo, começou a falar após ouvir o click do gravador do investigador a sua frente.
- Gregory, você poderia trocar o meu nome e o de Sophie por “Inconsequência” e acrescentar o sobrenome “Sonhos” – começou ele.

- Eu disse que seria uma tempestade e tanto – disse a senhora enquanto entregava toalhas felpudas e cheirando a alfazema para Emilie e Konstantine.
- Será que vai durar muito? – indagou Konstantine.
- Se bem conheço essas chuvas que chegam assim, aos poucos, ela vai durar a noite inteira.
Emilie enxugava os longos cabelos com destreza e sem muita pressa. Sentia-se um pouco cansada e até esfomeada, mas perguntou algo mais pertinente para o momento:
- A propósito senhora, estamos aqui e até então não sabemos o seu nome, nem quem é você – disse ela tentando não parecer ríspida.
- Ah, minhas queridas, mil perdões! – desculpou-se a senhora de olhos ternos – Que desleixo o meu. Muito prazer, me chamo Deliverance. – concluiu ela fazendo uma mesura enquanto colocava as mãos sobre o coração como se cumprimentasse ambas ao mesmo tempo.
Konstantine, que era muito ligada a nomes, achou que não haveria nome mais apropriado para aquela senhora. Apesar das circunstâncias no mínimo peculiares em que se encontraram, ela não parecia nada ameaçadora. No momento em que disse seu nome foi como se o closet em que se encontravam tivesse se tornado mais aconchegante e era como se suas roupas tivessem começado a secar rapidamente com o calor que exalava da expressão e do gesto de Deliverance.
- Bonito nome, devo dizer – elogiou Konstantine.
- Digo o mesmo – completou Emilie.
- Obrigado, meninas. Muito obrigado. Vocês devem estar com fome, não é mesmo? Com sorte, antes de sair, preparei um bolo e agora farei um bom café para nós. Noites chuvosas ficam melhores ainda com bolo e café. Podem ir até a sala e acender a lareira? Já chego até lá.
As duas concordaram prontamente como se fossem mecânicas e enrolando as tolhas em seus ombros dirigiram-se até a sala onde colocaram algumas toras de pinho na lareira apagada e acenderam com ânsia, por conta dos dedos já dormentes pelo frio. Sentaram-se e enquanto as chamas cresciam lentamente e a sala ia sendo iluminada e mostrava detalhes que só se encontravam em casas de anciãs, avós ou solteironas com gatos.
Um aparador repleto de fotos em preto e branco, em sépia e de um colorido desbotado, como se fossem uma linha do tempo ali mesmo, exposta a quem quisesse admirar; pinturas pré-rafaelitas preenchendo algumas paredes, delicadas e etéreas; uma escrivaninha apinhada de papeis e livros antigos, que pareciam quase falar; um tapete simples, quase marfim, estendendo-se pelo chão em frente a lareira que nesse momento servia de descanso para o persa gordo e sonolento que precisava terminar sua secagem e enfim tirar o sono que parecia adorar. Interrompendo a admiração pelo lugar, Konstantine disse:
- Ok, ok... Tenho certeza que não sou só eu que estou achando tudo isso muito estranho, mas pelo amor dos deuses, quem é essa mulher?
- Sei tanto quanto você, Konst – balbuciou Emilie com receio de que fossem ouvidas.
- Ela parece conhecer a gente, reparou que não perguntou nossos nomes?
- Percebi sim, e estou tentando assimilar o fato dela ter aparecido bem naquele instante em que íamos pegar o táxi. Sei lá, essa casa, o fato dela morar aqui, bem em frente a casa do Christopher, parece ser tudo armado de última hora, sabe? É como se ela simplesmente tivesse começado a existir nesse momento!
Mas naquele instante outro objeto chamou a atenção de Emilie. Com as chamas mais altas, a luz refletia-se na moldura de prata de um porta retrato bonito, que emoldurava uma foto realmente bela. Deliverance, anos mais nova, estava sentada em uma poltrona e uma criança muito bonita estava sentada em suas pernas. Ambas sorriam de modo sereno para frente, como se olhassem dentro da alma de alguém muito especial e Emilie achou o rosto da criança estranhamente familiar. Apanhou o porta retrato entre as mãos e aproximou-se da janela para tentar captar alguma luz que não assumisse tons avermelhados. No exato momento um relâmpago desenhou-se no céu inundando de luz branca o aposento e mostrando as cores reais do retrato. O vestido delicadamente rendado e branco de Deliverance, as roupas da criança em tons lilases e brancos e acima do etéreo sorriso, olhos fortes e verdes. Ambas tinham os mesmos olhos e pareciam compartilhar do mesmo viço, da mesma espécie de magia.
- Encontrou minha foto e a de minha neta, Emilie? – indagou Deliverance da porta com uma bandeja entre as mãos.
Konstantine sobressaltou-se, mas se manteve no mesmo lugar, um pouco apreensiva demais.
- É uma linda foto Deliverance, mas, me diga... Como sabe o meu nome?
- Eu também sei o de Konstantine.
A morena de melenas violetas assumiu uma expressão séria, como se estivesse em uma reunião com o juiz da comarca.
- Poderia me responder como? – indagou Konstantine de forma invocativa.
- Mais uma vez eu peço desculpas a vocês por todo esse incômodo e esse mistério inoportuno, mas, vamos, esquentem-se com o café e o bolo, sei que devo explicações a vocês.

31 de outubro de 2008...
O charmoso Oldsmobile tossiu quando se aproximou da calçada e então apagou. Christopher se sentia um pouco tenso, não gostava de viajar a noite e ainda mais debaixo daquela tempestade que estava chegando. Ele podia vê-la avançando mansa por sobre os montes no limite da cidade e isso queria dizer que duraria a noite toda, sem trégua, resultando em estradas lisas e traiçoeiras. Ele realmente não sabia para onde iriam, não sabia realmente qual eram os intuitos daquela fuga, mas entendia que ela significava realmente muita coisa. Talvez até boa parte do futuro de ambos.
Avançando pelo caminho gramado, o jovem pensava se não deveria sair dali e apenas telefonar dizendo que passara mal, que aquilo estava lhe dando comichões, mas Sophie jamais o perdoaria. Como que por adivinhação, ela abriu a porta empolgada, alerta a todas as possibilidades que um mundo inteiro a frente poderia oferecer. Com destreza arrumara suas malas muitas horas antes com o intuito de não perder mais tempo algum naquele lugar, com aquelas pessoas, com aquelas questões que nunca se desamarravam, com a mesma superproteção, com a mesma desconfiança, com os acessos de fúrias seguidos de bofetadas e portas trancadas por horas a fio. Ela estava disposta a deixar seu pai para trás, sabia coisas demais sobre ele e isso a perturbava todos os dias e noites de sua vida. Ele sabia de sua ciência e por isso ela teria de fugir, ela teria de ser esquecida, teria de enfim, desaparecer.
Mas, como tudo para Sophie, desaparecer tinha um significado diferente. Para ela, despir-se de medos, traumas e raivas era o ato propriamente dito de desaparecer, pois esta tríade representava o resumo de seus dias nos últimos anos naquele lugar, após a morte de sua mãe. Sentia falta dela, muita falta. Certificou-se mais uma vez de que aquele velho porta retrato estava em sua mochila envolto em uma sacola de cetim roxo, delicadamente bordada com o sobrenome “Bartlett” em linhas cintilantes e prateadas. Era uma foto de sua mãe e naquele momento Christopher aproveitou para apreciar aquele retrato mais uma vez. Desde a primeira vez que o viu, ele se encantou com a beleza da mãe de Sophie. Aquela foto traduzia perfeitamente a personalidade daquela balzaquiana: etérea, virginal, envolta num ar místico. Assemelhava-se a uma pintura sacra. Um anjo sem asas, para melhor exemplificar. Como se chamasse a si mesma de volta para a realidade, Sophie apanhou as chaves em suas mãos e trancou a porta depressa, como se cada componente do chaveiro de prata estivesse queimando seus dedos. Ambos desceram em silêncio os poucos e pequenos degraus que levavam ao mal cuidado jardim e então ela arremessou o molho longe, expressando repulsa. Fechou o portão com estrondo, mas ainda assim não conseguindo perturbar a quietude que se instalara na rua, como se tudo estivesse em expectativa para desaparecer embaixo da tempestade que se aproximava.

Gradativamente, Christopher ia enfileirando os fatos em sua devida cronologia. Impressionou-se com os detalhes que agora se mostravam tão nítidos, fazendo-o questionar se isso estaria acontecendo por conta de todas aquelas lembranças terem ficado guardadas de um modo tão velado, quase inexistente. Mas, por hora, o que lhe chamava atenção eram as expressões que o investigador Thompson assumia a cada passo da trajetória narrada daquela noite a quatro anos atrás. Em uma parte reservada de sua mente, Christopher começava a se perguntar se todo aquele interesse e atenção integral voltada a tais questões eram apenas mero ócio do ofício. Entretanto, o que lhe falava mais alto naquele momento eram as lembranças que desfilavam diante de seus olhos, mais uma vez organizadas, como que catalogadas e em fila indiana. Elas apenas pediam gentilmente que fossem narradas, lidas, interpretadas e resolvidas. Fechou os olhos, ouviu a chuva ao longe, esperou que uma imagem se formasse diante de suas pálpebras cerradas e então continuou a narração.

- Uau! Eu não acredito que a Emilie e a Konstantine nos emprestaram o velho e lindo Oldsmobile! – saudou Sophie, empolgada.
- Ele também é meu, Sophie. Lembra que eu dei a maior parte do lance no leilão? Foi mesmo uma sorte acharmos esse carro e ainda por cima exatamente no dia em que consegui uma ótima grana. - lembrou-se Christopher com saudade daquela noite em que festejaram até cair por conta da barganha adquirida.
- Se esse carro falasse hein, mocinho? – brincou Sophie enquanto simulava um soco no ombro do rapaz.
O sorriso que se formara nos lábios de Christopher esmaeceu lentamente quando ele olhou para trás e assim analisou os prédios próximos, as casas que subiam colina acima, as ruas sinuosas que se perdiam a cada esquina escura e pouco convidativa. Ele estava esboçando uma despedida, embora não se importasse muito, afinal de contas sempre partilhara do sentimento profundo de se afastar dali e não pisar os pés nunca mais naquele lugar.
Perceberam que até aquele momento ambos estavam se ocupando de uma coisa deveras dispendiosa: procuravam todos os dias por uma transformação que os tornasse um arremedo de si mesmo, a ponto de nem se reconhecerem mais. Momentaneamente se sentiam como se tivessem 130 anos repousados de forma incômoda sobre os seus ombros e isso definitivamente não estava nos planos de nenhum dos dois. Agora entendiam com clareza que a desordem é tenaz. Todos os laços, todas as amarras, os controles e pretensões... Nada adianta se o vento não soprar. Era isso o que eles fariam: abririam as janelas da alma para deixar que a brisa entrasse com destreza e determinação. O vento que então enfurnaria suas asas seria a sua alforria daquele mundo. Eles sabiam que era alto, mas iriam pular. Perguntavam-se o que é que todos iriam dizer e aonde eles chegariam, mas essa era uma resposta que nem os olhos podiam ver... Decididos, não voltarão para casa, para o lar, para o corpo e todas as palavras que a vontade conseguir pensar.
- Ei... – chamou Sophie com voz cálida e segura – Tudo vai ficar bem, eu prometo.
- Engraçado, sinto como se fosse eu quem devesse estar falando isso...
- Ai, deixa de ser machista, cara! Me deixa pegar as rédeas de tudo pelo menos agora!
- Ei, ei, ei! Nada de estresse agora, ô Senhorita Dedo Pulos! – brincou Christopher fazendo cócegas no nariz de Sophie.
- Cala a boca, Leves Mãos! – disse ela entre gargalhadas, abraçando-o.
Aproximando-se, ambos prometeram em suas mentes, olhando-se nos olhos, que tudo realmente ficaria bem. O forte abraço que se seguiu foi um dos mais puros, seguros e libertadores dos últimos tempos. Eles precisavam daquele momento, daquela fuga, daquele desaparecimento.
Adentraram o carro e sentaram-se conforme a exigência de Sophie: ela dirigiria. O Oldsmobile avançou pela rua, deixando para trás todo um passado que merecia ser enterrado. A todo o momento, ambos prometiam para si mesmos que tudo ficaria bem e que agora nada representaria impedimentos.
- A propósito Dedo Pulos, qual o nome do seu pai mesmo? Você sabe, não costumo gravar o nome de pessoas que não vejo com frequência...
- Nem eu o vejo com frequência, Christopher. Ele deve estar trabalhando num caso agora, por isso o tenho visto com menos frequência ainda. Ah, o nome dele, não é?
- Sim. E o que ele faz mesmo?
- Ele é um investigador particular agora, mas já trabalhou de perto com a perícia no departamento de polícia da cidade e de alguns estados vizinhos. O nome dele é Gregory, Dedo Pulos! Já disse mil vezes... Gre-go-ry Thomp-son, quer que eu soletre?
- Engraçadinha! Fica quieta, presta atenção na estrada.
Enquanto Christopher aumentava o volume da música e Massive Attack preenchia todos os espaços vazios do carro, lá fora as gotas também reivindicavam seu espaço musical. Uma cortina densa e gelada estendeu-se por toda a cidade e enquanto isso o destino de Christopher e Sophie se aproximava cada vez mais.
Ambos sentiam a chuva se adensar, mas aquilo realmente parecia não importar. Alternavam a atenção à estrada entre brincadeiras e lembranças do ensino médio, cantavam as músicas que iam tocando de forma aleatória. Embora tranquilos, algo ainda latejava na consciência de Christopher, inquietando-o vez ou outra, como espasmos de preocupação. Observou com tanta atenção os desenhos sinuosos que a chuva pincelava no para-brisa que terminou por dormir, mergulhando em sono inquieto. Minutos depois uma claridade inoportuna incomodou seu sono e ele abriu os olhos, pouco satisfeito. Pôde diferenciar em meio à chuva dois farois que avançavam metros atrás do Oldsmobile, abrindo caminho entre as gotas pesadas e ininterruptas, que caiam como correntes.
- Mas que droga, esse infame não sabe abaixar o farol, não?
- Christopher, – chamou Sophie com um tom sério demais. – é ele.
Entendendo imediatamente, ele indagou:
- Vamos parar Sophie, a gente conversa civilizadamente com ele.
- A última coisa que eu vou fazer é parar. Quero esse assassino longe da gente!

Ao pronunciar aquela palavra que até então estava entranhada em suas memórias, Christopher arrepiou-se. Fechou os olhos longamente a fim de não encontrar os de Gregory, que tremia levemente a sua frente, curvado, apoiando os cotovelos nos joelhos e com as mãos juntas abaixo do queixo, como se formassem um pequeno templo ou uma pequena gaiola. Prosseguiu.

- Isso é imaturo, Sophie! Por favor, vamos parar e ver o que ele tem a dizer!
Naquele instante os pneus do carro vacilaram e então o Oldsmobile começou a ser sacudido por pequenos solavancos que elevavam ambos em pequenos intervalos. Intercalando-se com o forte tamborilar da chuva, eles podiam ouvir o som das vigas de madeira da ponte na qual havia adentrado.
A escuridão era ameaçadora. Colando o rosto no vidro para vencer a condensação, Christopher tentava enxergar dos lados e além, mas tudo era apenas um manto negro que cintilava em mil estilhaços gelados iluminados pelo farol do antigo carro. Por algum motivo ele achou que aquele caminho era errado, que aquela ponte era perigosa demais para uma noite como aquela. Olhou para Sophie e esta parecia ter se fundido às engrenagens do carro. A estrada a frente era o seu mais voraz objetivo, em seus olhos estava injetada uma raiva que Christopher jamais havia visto. E ela acelerou ainda mais. Ambos foram sacudidos com mais violência, elevando-se a alguns centímetros do banco. Abaixo dos pneus as vigas ribombavam ameaçadoras, como se fossem se soltar a qualquer instante.
- Eu não vou parar, Christopher! Eu não posso, eu parei a minha vida por ele até agora, eu preciso ir embora!
As mãos de Christopher estavam geladas, e então ele procurou abrigo entre as dobras que a blusa de Sophie formava. Um riso débil escapou de seus lábios com o repentino carinho, mas não amainou sua fúria perante a estrada. Os farois que vinham logo atrás estavam a poucos e intimidadores centímetros, forçando-os a parar. “Ela jamais se entregará”, percebeu Christopher. Então começou a entender que teriam de surgir medidas rápidas e drásticas. Começou a entender que, a partir dali, começaria a ter de cultivar o desapego rápido e indolor.
- Christopher! – chamou Sophie com a voz trêmula.
- Sim? – respondeu Christopher mais seguro do que ela pensou que ele estaria.
- Eu te amo muito, de verdade.
- Eu também te amo, Sophie, mas, que é que está acontecendo?
- Me promete uma coisa?
- Me diz o que é primeiro, por favor...
As tábuas continuavam vacilando e o veículo logo atrás simplesmente não esboçava trégua alguma.
- Essa ponte não tem saída, ela está inacabada.
- Então é melhor pararmos, Sophie. – disse Christopher tentando não fazer com que a calma se esvaísse.
- Vamos saltar, nós vamos conseguir nos livrar dessa!
A verdade é que Christopher não estava arrependido de estar ali. Vencera muitas coisas para que então pudesse estar indo rumo a um futuro sem amarras, livre de espectros opressores.
- “Se você pular, eu pulo!”, lembra? – disse ele com um sorriso que cintilou no interior do Oldsmobile.
- Eu nunca vou me esquecer, nunca!
Sophie apenas dirigiu sua atenção para o ponto em que podia diferir o fim da ponte, destruída, retorcida, exatamente como estavam muitas de suas concepções naquele momento. Aquele salto iria reconstruir todas as suas próprias pontes.
O velho carro não parecia apresentar sinal algum de falência, mesmo com a longa idade. Christopher pousou sua mão sobre a de Sophie e então apenas esperou.
Olhou para trás a ponto de ver o outro veículo parar repentinamente. Apertou a mão de Sophie com força e então prendeu a respiração.
De repente não havia mais o barulho das tábuas e vigas antigas, não se sentia mais o atrito com o chão acidentado, a música parara de tocar, ambos flutuavam no tempo e no espaço, indo de encontro à parede gelada e corrente. Esperaram aqueles longos segundos enquanto suas mentes estavam a mil, fazendo perguntas em centésimos, ponderando sobre o futuro em milésimos. Não sabiam, realmente não sabiam. Apenas queriam.

- Antes que me perguntem, eu também conheço Sophie, a amiga de vocês – revelou Deliverance com voz terna e sem oscilações.
- Qual é o seu sobrenome, senhora Deliverance? – perguntou Emilie tentando esboçar despreocupação.
De forma quase inocente e doce, Deliverance respondeu enquanto enchia uma xícara de café:
- Bartlett. Meu nome completo é Deliverance Bartlett. Por que?
- Você é a avó de Sophie. – concluiu Emilie veementemente.

Continua...

Ao som de "130 Anos", Agridoce.


sábado, 29 de setembro de 2012

Para Aqueles que Não Querem Ser Esquecidos

Só peço que me ame menos, mas que seja por muito tempo.

Consideraria esse um post bobo se não houvesse sentimentos. O fato é que eu precisava externar isso de algum jeito, mas a minha inabilidade com papeis que surgiu recentemente não me deixou pegar meu diário e escrever como o escritor responsável que eu já fui.
Mas, enfim, o que me ocorre agora é o quanto eu fico vulnerável com a possibilidade de ser esquecido. Uma espécie de medo, frustração e receio metodicamente compactados me vêm aos sentidos e meio que fico fora de órbita. Quase egoísta isso, não é verdade?
Eu também consideraria assim se não tivesse ciência da reciprocidade e da ligação que se desenvolveu entre nós e que agora parece ser apenas um sopro, coisa irrisória, passiva de ser apagada por conta de novos rostos pelo caminho.
Eu não vou citar nomes aqui, simplesmente porque isso me faria ficar clumsy demais. Como vêem, nem estou floreando muito, mas é que além de estranho, isso me faz sentir cansado.
Perguntarão por que é que eu não corro atrás, e eu parafrasearei Manuela, amiga das tantas, dizendo: "Eu luto, mas luto pouco porque não tenho armas."
Só o que quero é que não nos percamos, que as coisas que o nosso setembro de um ano atrás trouxe, não evanesçam. Eu nem sei se você vai ler isso aqui e nem criarei planos para que "milagrosamente" essa página apareça na sua dash, na sua timeline ou no seu feed de notícias.
O que penso é que sempre achei que as pessoas deixassem uma marca indelével nas nossas almas. Algo que nunca pode ser apagado, como disse Phillip Broyles.
Não gosto de textos assim, cheios de lacunas e frases tortas, ressequidas e despropositais. Mas é que regularidade de fatos hoje, para mim, representa uma infindável sucessão de pequenices decepcionantes.

Ao som dessa mix que há semanas estava esboçada esperando por uma cadência de músicas que eu não sei se funcionou direito:  Letting you go

domingo, 23 de setembro de 2012

Memórias de Hogwarts


Depois de levar mais de um ano para não se perder no caminho para a torre de astronomia, o garoto Setterwind enfim acertara o lugar sem percalço algum. Especialmente naquela manhã ele acordara bastante cedo; vestiu-se silenciosamente e a passos leves, deslizou para o corredor como se fosse apenas mais um fantasma pelos corredores do castelo. Seguiu pensando em como seria aquele novo ano letivo, pensou no que os seus então doze anos de vida significavam agora que enfim estava no lugar certo.
Não gostava muito de se entregar a certos devaneios, pois, de alguma forma entendia aquilo como uma preocupação adulta demais para ele. Mas é que enfim aceitara a maturidade que sem precedente algum deu lugar a um jovem de poses diferentes, estranhas até. Gostava de sentir a magia do castelo enquanto ia aos destinos de todos os dias. Ia meneando a mão pelas paredes rugosas e pensava na magia de tantos séculos que se encerrava ali, entre cada rachadura e seixos compactados. Estranhou não encontrar Filch, nem Madame Nora ou mesmo algum inspetor àquela hora e então julgou que deveria ter quebrado o recorde de todos os alunos na escola estando de pé antes de todos.
O sol ainda não se levantara sobre os campos de urze no horizonte, pairava no ar leve neblina que se adensava abaixo da torre, tornando-a um anexo, um lugar a parte de Hogwarts. Ao se aproximar do corredor em que as janelas se emparelhavam, ouviu certo murmurar, percebeu uma inquietação que parecia vir de um grupo de pessoas que estava além daquela parede. Avançou lentamente e quando colocou a cabeça para olhar sorrateiramente, sobressaltou-se.
Minerva McGonagall olhava com ar sereno pela janela, como se esperasse algo acontecer. Mais próximo dele, Dumbledore ria pensando em coisas distantes e de repente olhou-o como sempre fazia, por baixo de seus oclinhos de meia-lua.
- Junte-se a nós, caro Saymon Setterwind! – convidou ele.
No espaço entre os dois professores, um grupo de alunos também olhava atentamente para o horizonte, com a mesma expressão de espera. Sobressaltaram-se com o convite do professor, e então se viraram para ver quem chegava para também celebrar a chegada do sol.
Saymon Setterwind olhou todos com ar débil, mas feliz por vê-los ali. Janaína Angelis, com os longos e negros cabelos soltos e Fernanda Adler, na sua sempre oportuna morenice de olhos castanho escuros, acenaram com um sorriso para que ele se juntasse ao lado delas. Dando mais uma olhada, ele pôde identificar todos os que ali estavam. Viu Jaala Garrett sorrir inocentemente por entre os cachos que emolduravam seu rosto e brilhavam sob a luz pálida da manhã; viu Denise Woods, que ao lado da amiga tentava se concentrar em não olhá-lo com expressão um tanto mística. Vyktor Sanders, o esquisito garoto grifinório, também estava lá, alternando sua atenção entre cutucões em Patrícia Winfield, a garota absurdamente engraçada que puxava o cabelo do sempre sorridente Alexandre Wisely. Tamires Van Feu também estava lá, sempre serena e de mãos enluvadas, na tentativa vã de encarcerar o Toque de Cassandra abaixo do couro curtido. Para sempre aqueles olhos acompanhariam Saymon, pois afinal de contas ela sempre soube de tudo. Até os odiosos Jheferson Conl e Nivaldo Wislow estavam lá, mas naquele momento nada parecia importar para eles, nem mesmo a sede de poder. A maldade que ele sabia que habitava naqueles então jovens corações, não era párea nem para aquele momento. Paula Madden vagueava entre olhar para os jardins lá em baixo e insistentemente tentar tirar lascas da madeira do batente a sua frente, enquanto sorria de forma terna para Saymon e acenava a varinha para os fragmentos que rodopiavam e levitavam alguns centímetros acima de sua mão. Letícia Mitchell esfregava as mãos e colocava-as levemente sobre as bochechas, como sempre fazia nos momentos após acordar.
- É agora, professor. – lembrou McGonagall.
Naquele momento o ar assumiu um alaranjado intenso, inundando a cúpula da torre como se esta estivesse em brasa. Lentamente as cores se tornavam mais amareladas e a luz solar preenchia o castelo mansa e silenciosamente, deitando-se sobre tudo, desde os limites da floresta proibida até as estufas, passando por cada fresta, corredor e passagem, secreta ou não. Todos foram inundados de profunda ternura e seus olhos se encheram de lágrimas.
Nunca existirá sentimento semelhante ao de se sentir em casa. Era isso o que Hogwarts era para cada um ali: o seu lar, o porto seguro de todos. Saymon segurou com força a mão de Janaína que direcionou a ele um olhar que traduziu uma amizade profunda. O garoto de cílios espessos apertou os olhos e abriu-os lentamente para então perceber que estava agora no salão principal, mergulhado em mortal escuridão, nove anos depois daquela memória.

Uma antiga espada cintilou no canto de sua visão e ele avançou para apanhá-la. Jheferson também fez o mesmo e agora ambos empunhavam suas armas, já que na luta foram desprovidos de suas varinhas. Denise assistia a tudo da escadaria, como se estivesse fincada na pedra. Pelas janelas Saymon podia ouvir o lamento de Jaiza Wolf, que chorava abraçada ao corpo de Harry Potter.
Tom Riddle estava a alguns metros, inerte. Eles se viraram para ver quem se aproximava correndo em meio ao salão e puderam perceber a silhueta de Maiza Wolf desenhar-se sob a luz dos feitiços que ricocheteavam pelos corredores e estilhaçavam as paredes. Passou furtivamente por ambos, queria parar, deferir um “Sectumsempra” contra o pérfido Conl e dizer a Setterwind e a Woods para que ambos corressem para longe, pois aquela era uma guerra perdida. Mas na verdade ela precisava correr rapidamente para amparar sua irmã. Olhou Saymon nos olhos e ele percebeu que aquilo era um adeus.
Ambos apertaram com força a base das espadas que empunhavam e avançaram com fúria e ódio.
Setterwind então finalmente entendeu que nenhum dos dois sairia vivo dali.

Fragmento de algum ponto em meio a batalha – por Saymon Freire e Fernanda Lemos


Ao som de "A Window To The Past", John Williams.


terça-feira, 11 de setembro de 2012

O Fantasma



Pairava a dúvida sobre a cabeça dos que ali habitavam. No momento em que o sol se punha, a mesma ladainha se desenrolava. Esperando o momento em que as últimas luzes do dia arroxeavam-se no horizonte, ele sempre acendia uma vela. Sabia que se ela ardesse azul, isso seria algo inteiramente diferente, não é sorte alguma, pois significa que há um espírito na casa. E se a chama bruxulear, depois se tornar mais forte a cada vez que a vela é acesa, o espírito está instalando-se. Sua essência está enroscando-se nos móveis e nas tábuas do assoalho, está reivindicando armários e guarda-roupas e, em breve, estará chacoalhando janelas e portas.
Às vezes leva bastante tempo para que alguém na casa perceba o que aconteceu. As pessoas querem ignorar o que não conseguem compreender. Procuram a lógica a qualquer preço. Uma mulher pode facilmente pensar que é tola o bastante para não se lembrar de onde guardou os brincos a cada noite. Ela pode convencer-se de que uma colher de pau extraviada é a razão por que a máquina de lavar louça está constantemente entupindo, e que o banheiro não pára de alagar devido a canos defeituosos. Quando as pessoas se provocam, quando batem portas umas na cara das outras e se xingam, quando não conseguem dormir à noite devido à culpa e aos maus sonhos, e o próprio ato de se apaixonar deixa-as nauseadas em vez de atordoadas e alegres, então é melhor considerar toda causa possível para tanta má sorte.
Já naquelas noites ele estava evitando dormir. Seus sonhos tornaram-se demasiados realistas e como se não bastasse se tornavam realidade no decorrer do dia. Pequenas premonições, manifestações clarividentes, avisos. Diminuíam o impacto causado pelas doses miúdas de decepção, mas é claro, não evitava que as mesmas tivessem efeito. A mescla do cansaço, do desencontro, da espera e do receio estava sendo servida todos os dias no desjejum; no almoço; para o lanche das horas vagas e requentada no jantar.  Alguns amigos especiais dividiam as iguarias com ele, por vezes até anjos se sentavam a mesa, cantavam na cozinha depois de vigiar todos os cômodos da casa a pedido dele.
Decidiu ele que se encontraria com o fantasma, que perguntaria de onde ele veio e porque cargas d’água se instalara ali, com todas as manifestações, ectoplasmas, arrepios e calafrios. Reparou que o crepúsculo avançava; que as sombras se deitavam e que no arquejar do dia, uma fresta fugidia do sol poente se sentava em sua cama, acentuando o aroma de lavanda que enchia o cômodo e continuava a pairar ali por toda a noite. Foi para o quarto e se sentou, encostou-se a cabeceira e esperou que na dita hora o espectro adentrasse o local e começasse mais uma vez as suas danações.
Obsevou a réstia de luz tremeluzente, meio azulada e trêmula sobre os seus lençóis, deitando um iluminar matreiro e abastado de preocupações. Bem aos pouquinhos foi sentindo seus pêlos arrepiarem-se, foi sentindo certo frio se espalhar na espinha, certo ardor de adrenalina nas maçãs de seu rosto. Ele estava chegando, percebeu. Concentrou-se no resto de dia que se derramara em sua cama e então sentiu o menear do colchão, viu a espuma aprumar-se embaixo de um peso supostamente inexistente. Sem saliva, lambeu os lábios em vão. Viu, a sua frente, formas tênues desenharem cores e formatos no ar.
Como se um espelho tivesse sido posto aos pés da cama de modo a refletir-lhe, pôde ver a si mesmo sentado a beirada da cama, encarapitado, olhando fundo e forte em seus próprios olhos. Nem as andorinhas com seu alvoroço de fim de dia cantaram lá fora. Tudo o que ele ouviu foi o ranger do estrado da cama com o novo peso que se sentara sobre ele. O ser aproximou-se, esvoaçante, etéreo. Olhou o seu igual com espanto de uma distância que permitiu fazer com que o ar que os separava zumbisse de embaraço e admiração e então sentenciou, com pesar e compaixão na voz:
- Meu Deus... Como pode existir coisa mais real do que um fantasma?

Ao som de "Flor da Noite", Nana Caymmi.


quarta-feira, 4 de julho de 2012

Dex e Em, Em e Dex

Prometi para mim mesmo que não assistiria ao filme deste livro enquanto não o lesse, e assim o fiz. De certa forma eu agradeci por estar desligado do mundo virtual, pois ele já teria me proporcionado spoillers demais, ou mesmo desmotivações. Li sem saber onde pisava; em que território adentrava; uma experiência totalmente nova. Ontem, pela manhã, vi o trailer pela primeira vez e fiquei impressionado com o quanto tudo está absurdamente fiel ao livro. Só faltavam algumas poucas páginas para que eu concluísse a leitura e então o fiz.

Saymon, 03/07/2012, 21h28min – numa noite abafada, com o coração quebrado.

Quando assinei a última página do livro com lápis como sempre faço para documentar a data e a hora em que terminei de ler o livro, eu me sentei na cama, meio atônito, com a garganta apertada e simplesmente não sabia no que pensar direito.
Talvez optasse por analisar, como disse Tony Parsons, “o assombroso hiato entre o que éramos e o que somos”.
Pensei por horas em diversas possibilidades, me vi nostálgico, me vi cheio de planos e ao mesmo tempo parado no espaço, sem reação.
Por doze dias tive a companhia constante de Dexter Mayhew e Emma Morley. Observei suas vidas, suas idas e voltas, me identifiquei de forma assustadora com a Em e tive muita vontade de socar a cara do Dexter, que mesmo sendo “bonitão”, conseguiu me tirar do sério por muitas páginas. Prometi que não devoraria esse livro, desde o começo quis degustá-lo de forma que pudesse entendê-lo em todas as suas formas, metáforas, observações inteligentes e um sentimento tão pungente que já fazia algum tempo eu não sentia tão próximo de mim.
O que primeiramente me fascinou foi o fato de que este livro foi narrado com um discernimento tão preciso e verdadeiro, que chega a ser constrangedor. Minha juventude não foi nos anos 70/80, embora às vezes eu me julgue mais antigo que isso. Nunca tive um romance que me turvasse os sentidos e parecesse ser perene, ainda não me formei na faculdade e por vezes me sinto absurdamente obsoleto para muitas coisas que eu já deveria ter feito, mas erroneamente deixei que o fulgor se apagasse, mesmo que meus anos sejam ainda tão poucos e ainda cheirem a coisa razoavelmente nova.
Nostalgia, motivação, mudança, rupturas, nada de anedotas, culpa, baixa autoestima, egocentrismo, não sei explicar direito. Senti tudo de uma forma compacta e muito íntima, mas ainda assim crendo que todos os que leram não foram privados destas sensações e sentimentos. É difícil encontrar um romance que trate o passado recente com tanto conhecimento de causa. É ainda mais raro encontrar algum em que os protagonistas sejam construídos com tanta solidez, com uma fidelidade tão dolorosa à vida real.
Eu sinceramente não gosto de ler e nem de fazer resenhas sobre livros, hoje em dia há tantos blogs e fóruns sobre isso e eu não leio nenhum deles, não tenho paciência. Não sei se porque já fiz tantas por obrigação que acabei adquirindo uma relação de amor e ódio com as mesmas. Mas me dispus porque achei que seria uma ingratidão com todos os sentimentos que me vieram enquanto eu lia e quando enfim, terminei a leitura. Tanto é que até consegui ser breve.
E por favor peço que não me levem a mal, que não me tomem por uma pessoa com sérios sintomas de carência crônica e/ou solidão em potencial, mas acontece que Dexter e Emma realmente mexeram comigo de um jeito que não sei explicar direito. Esta obra é uma análise minuciosa e habilmente construída sobre o que fomos e o que poderemos nos tornar, mas o que realmente me influenciou a uma notória ruptura foi o fato de este é um escrito inteligente, engraçado, sagaz e, por vezes, insuportavelmente triste.
E repito aqui, balbuciando pra não perder a magia do momento:

Você é linda, sua velha rabugenta, e se eu pudesse
te dar só um presente
para o resto da sua vida seria este.
Confiança.
Seria o presente da Confiança.
Ou isso ou uma vela perfumada.

Sempre Dex e Em,  Em e Dex.

Ao som de “St Swithin’s Day”, Billy Brag (que tocou apenas na minha cabeça, com notas que desconheço, meio que fantasiosamente embalada por Ólafur Arnalds).

quinta-feira, 14 de junho de 2012

Eu simplesmente sei...


Como fazia sempre nas noites de lua cheia, dirigiu-se para a varanda, a fim de tocar seu violoncelo enquanto tentava acompanhar os sons da noite. Fechava os olhos imaginando aquela figura terna e ao mesmo tempo muito intensa adentrando sua casa, desmistificando a mesmice, afastando as sombras que se instalaram naquele lugar.
Há dezoito anos morando ali, sentia como se fosse apenas uma extensão da mobília, do chão de linóleo que nunca precisava ser lustrado ou mesmo do cheiro das roseiras que estavam na porta há tanto tempo que pareciam ter nascido ali por conta própria. Agora, naquele momento, enquanto as notas chorosas evanesciam das cordas do instrumento, ele se lembrava das pessoas que restaram.
Já foram muitas as especiais, mas estas se perderam no tempo ou simplesmente ficaram para trás. De certo modo ele se lembrava também de quantas pessoas se julgavam peculiarmente especiais, mas sabia que elas não o eram, ainda que pensassem o contrário.
Mesmo se julgando rabugento, se impressionara por nunca ter perdido a capacidade de sorrir, de sonhar e persistir. Gostava de se sentar em sua velha poltrona perto das janelas de vidro verde enquanto observava as pessoas passarem pela porta de sua casa, rente a cerca de madeira branca. Àquela época seus lilases cresciam demasiadamente, em descompasso total com seu tempo de flora e, além disso, apresentavam flores jamais vistas, sendo purpúreas ao centro, arroxeadas nas extremidades e pareciam ter luz própria. Sua presença e sua casa geraram lendas e boatos desde que se instalara ali. Não tardou para que as misteriosas flores atraíssem os jovens que vinham com o intuito de rogar por amores abaixo dos galhos frondosos e repletos de perfumados lilases. Certa vez teve a oportunidade de assistir a um casal que depois de se coroar com aquelas flores, proferiram ali mesmo seus votos de casamento.
“Feitiçaria” uns diziam, “fenômeno biológico” outros atestavam, “ele as rega com sangue” cochichavam as velhas da viela. Ele apenas se ria e continuava olhando através dos vidros verdes que transformavam o mundo lá fora em esmeralda. Ele sempre gostou do status de lenda que lhe foi dado, pois, se ele era lenda, era envolto em mistérios e magias. Se ele era lenda, poderia correr livre junto ao vento, buscando as histórias perdidas no tempo. Se ele era lenda, pelo desejo incontido que há nele, poderia tornar possível o encontro entre a Lua e o Sol, diminuindo o entrave da dor. Então, sendo lenda poderia cavalgar pelos sonhos, velejar pelos mares da sua saudade passeando pelo pensamento de quem quer que almeje. Sendo lenda, poderia brincar nas alegrias de quem o espera, sendo parte destas emoções caminhando tranquilo pela ilusão, sem medo algum de machucar-se. Sendo lenda, poderia escrever seu nome na vida de quem quisesse e vezenquando “ser pra sempre” na vida de muitos.
Às vezes, junto aos sons da noite, poderia jurar que ouvia o som de notas de piano que pareciam falar de um amor verdadeiro, pungente e próximo. Seus dedos enrijeciam, seus olhos se fechavam e ele sentia que aquela quimera iminente era sua. “Não tem medo da noite?”, lhe perguntavam as crianças por entre as roseiras acerca de seus passeios na floresta que adornava seu quintal, dando aspecto de infinitude. “Ela é minha amiga”, respondia ele com os olhos perdidos em algum pedido que parecia sempre saltar de seus lábios.
Foi naquela mesma varanda que enfim a noite lhe trouxe o recado que ele esperava há tanto tempo. Naquela mesma varanda onde fechava os olhos abaixo da lua cheia e balbuciava para o vento da noite dizendo que ele esperava, que estava ali aguardando um amor que se curvasse ao tempo, naquela mesma varanda que seu corpo lançava espasmos no tempo e no espaço da noite, sendo diluídos ao longe pela brisa dançante. As árvores sabiam, os lilases, sabia ele, estavam floridos assim, pois avisavam de uma certa chegada.
Como que feitiço, pôde ouvir galopes na floresta, vento que sibilava certa chegada, amor que se desprendia das folhagens e acompanhava a figura que adentrava o seu jardim. Correu para o espelho para se arrumar a fim de receber sua visita de forma apresentável. Olhou através dos vidros verdes, viu os lilases levitarem com a rajada súbita. Estava chegando, ele sabia. E então o pequeno portão se abriu, rangendo timidamente. Adentrou por ele valorosa mariposa, trazendo o cheiro muito doce e quase irritante das flores que ali cresciam em demasia como que por feitiçaria, fenômeno biológico ou sangue em suas raízes. Pousou delicada em seu ombro e naquele instante, observando a escuridão das árvores entrecortada pelo luar, ele pôde ver os olhos que o miravam dentro da floresta, sedentos, esperando por ele, mas sem poder se aproximar ainda.
Fechou suas mãos como um pequeno templo e balbuciou para a mariposa que repousava esperando entre os seus dedos: “Diga a ele que o espero, que estou aqui e que para onde for meu coração será dele”.
Liberta de sua pequenina gaiola, a mariposa de asas frondosas e cintilantes adentrou a floresta, levando em seu voo a notícia e a certeza da espera de uma chegada.
Sorriu ele, dizendo para a lua que derramava sua luz prateada, salpicando sua pele de chuva etérea: “Eu espero pelo amor e agora sei que ele está vindo até mim”.

Ao som dessa belezinha aqui: A Loveless Romantic

quarta-feira, 6 de junho de 2012

Pós Escrito.


Vazio. Páginas e páginas de palavras sem cor. Centenas de supostos sentimentos vencidos, uma escrita engessada, apelativa, escandalosa. Para tantos o valor das palavras é tão somente o impacto que causam em outrem. E os motivos são banais.
O valor de escrever não está em impressionar ninguém. Quem deve surpreender-se é quem escreve, a este basta somente que suas palavras lhe valham o que significam para si, nunca para outros.
O fardo pesado da sinceridade é carregado por poucos. Têm os que falam de assuntos mais picantes, ou de ficções cruéis, mas nem o domínio completo da técnica e do vocabulário torna esse tipo de texto suportável. Nem todo talento do mundo é capaz de convencer quando o sentimento não é legítimo.
Por mais simples que seja o sentimento, por mais simples que sejam as palavras, se é legítimo, há talento de verdade. As linhas tortas impregnadas de saudade fascinam. As dores encharcadas de lágrimas comovem, as esperanças cultivadas veementemente convencem. Escrever é, antes de tudo, descobrir-se a si mesmo. O que os outros vão achar disso, não importa.

Ao som de "Lost Song", Ôlafur Arnalds.

terça-feira, 22 de maio de 2012

O Grande Tear

Silêncio.  Silêncio. Silêncio. Silêncio. Silêncio. Silêncio. Silêncio. Silêncio. Silêncio.
Silêncio.  Silêncio. Silêncio. Silêncio. Silêncio. Silêncio. Silêncio. Silêncio. Silêncio.
Silêncio.  Silêncio. Silêncio. Silêncio. Silêncio. Silêncio. Silêncio. Silêncio. Silêncio.
Silêncio.  Silêncio. Silêncio. Silêncio. Silêncio. Silêncio. Silêncio. Silêncio. Sim-lêncio.

Silêncio... Era só isso o que eu ouvia. Meu silêncio era tão forte, tão grande, que criara vida. Ele estava ali de uma forma tão palpável a ponto de cobrir tudo. Céu, cidade e horizonte. Estava grudado em cada móvel, em cada átomo. E eu o perguntei: “Silêncio, eu estou de volta? Estou vivo?” e ele respondeu: “Sim...”, mas completou com dúbia voz: “... lêncio”.

      Até então eu não havia tomado conhecimento de tudo o que eu tinha passado até ali. Meus movimentos voltavam bem de mansinho aos seus devidos lugares, meus pensamentos mais pareciam um novelo embaraçado e eu só falava para dentro. Ali, naquela maca, coberto com lençóis ásperos com cheiro de sabão de coco. Apesar de tudo, meu cérebro voltava a sua frenética atividade e eu recomeçava a tecer meu relicário. E então eu pude enxergar muitas pessoas importantes, muitos rostos pairando e fiquei absurdamente feliz naquele momento por todos estarem ali comigo. Todos. Os de longe, os de perto, os deste mundo e de outros. Todos seguravam sorrisos flamejantes e grudavam em minha face a medida que se iam. Ali me senti fortalecido, encantado até, e muito, muito lisonjeado.
          Sim, eu NÃO estava sozinho.
         Foi então que lembrei que minhas pálpebras ainda podiam se abrir, que não eram meros enfeites. Só estavam um pouco pesadas e grudadas por uma espécie de resina operatória. Mas a questão fatídica é que ela fedia a cera de ouvido. Certifiquei-me de que meus dedos se mexiam e então levantei minha mão e tirei o excesso da tal resina. Textura e cheiro realmente idênticos a cera de ouvido, mas a cor não era, se é que isso serve como algum conforto.
            Tudo estava tão claro.
            Nítido, definido.
            A luz forte no alto era ofuscante e me impelia a fechar novamente os olhos.
            Eu estava sozinho no quarto, exceto pela pessoa cansada sentada ao meu lado. Não falava nada corporeamente, mas suas palavras enchiam minha mente. Como era seguro aquele homem e me dava uma sensação de paz revigorante. Perto dele eu não sentia dor.
            Mas então ele decidiu usar a boca e perguntou-me com palavras jubilosas:
            - Como foi a cirurgia?
            - Graças a Deus, tudo bem! – respondi com voz rouca.
            Ele deu um sorriso torto, mas naquele instante a enfermeira irrompeu pela porta. Analisou-me e enfim, disse:
            - Bom dia, Saymon! Como você está?
            Respondi que estava bem, mas reclamei da dor aguda em minha garganta e no meu peito. Era como se eu tivesse dormido com uma pedra sobre o meu peito durante dois dias. E então ela me perguntou:
            - É... Saymon, você sabe onde está?
            - No centro cirúrgico, não é?
            - Não Saymon, você está na UTI.
            “UTI? Última Tentativa do Individuo?”. Fiz aquela terrível piada mentalmente e cheio de incredulidade, ao mesmo tempo em que me preocupava com a situação de minha mãe.
            Eu fiquei apático. Entrei no centro cirúrgico para fazer uma cirurgia simples, adenoide, 45 minutos no máximo. Eu sairia consciente, mas não! Comigo tinha de ser diferente. Tive complicações e já estava há 18 horas na UTI.
            - Como assim? – perguntei ainda incrédulo.
            - Bom Saymon – começou a enfermeira – não vou te deixar sem explicações. O fato é que seu organismo não reagiu bem a anestesia geral e quando você começou a voltar a si sua pressão baixou absurdamente rápido. Isso causou uma complicação séria no fluxo de ar, o que encheu seus pulmões de líquido. No ato, tivemos que entubá-lo e esperamos. Mas você forçava muito para respirar e sua pressão continuava caindo. Foi então que começou o processo de coma e não tivemos escolha. Levamos você para a UTI.
            - Tudo isso?  Mas, e a minha mãe?
            - Fica tranquilo, ela já foi avisada e já veio te ver, mas você estava inconsciente. Infelizmente nem ela pode entrar.
            - Que horas são?
            - Oito da manhã.
            Só naquele momento que eu pude perceber o relógio antigo pendurado na parede bem a minha frente. Era tosco e irritante. Apesar das primeiras horas da manhã o sol já era forte, mas sua luz era roxa ali dentro por conta do adesivo escuro nas janelas diminutas.
            - Eu tenho uma última pergunta... Quem era aquele médico que estava aqui no quarto comigo?
            - Olha, havia uma equipe de seis médicos.
            - Não, não pergunto na hora da cirurgia, pergunto agora a pouco, umas sete e meia.
            - Bom, não havia ninguém aqui, só você, Saymon. Mas, fica tranquilo, descansa que já, já passa o efeito da anestesia por completo.
            De fato, eu estava bastante cansado. Depois daquela breve conversa eu comecei a analisar os grãos de poeira e minúsculos fiapos de pano que flutuavam num lento balé. Giravam como pequenos planetas, movendo-se em torno uns dos outros numa dança celeste.
            A poeira era tão linda que inalei, chocado; o ar assoviou por minha garganta, fazendo rodopiar os grãos de pó. A ação parecia errada. A ação ERA errada. Naquele momento minha traqueia gritou de dor e meu peito resfolegou. Meus pulmões não esperavam por aquilo e reclamaram com o súbito influxo. Mas não era só a dor que incomodava, a sede era absurda. Arranhava minha garganta e enchia meus olhos de lágrimas. Eu estava há quase nove horas sem água.
            Acalmei-me e esperei. Alguns minutos depois a enfermeira trouxe-me uma maçã, um copo generoso de suco de cajá e alguns biscoitos. Ignorei os itens sólidos e bebi todo o suco em poucos goles. Como era bom ter algo líquido para apaziguar os sentidos! Em seguida comi a maçã e os biscoitos bem devagar, para não machucar.
            Terminei minha refeição matinal com custo, mas agora eu queria muito descansar. Era bom estar vivo de novo. Ali eu prometi nunca mais morrer e em seguida caí em sono profundo, mas calmo.

            Acordei duas horas depois, bem mais calmo e cuidadoso para não fazer movimentos bruscos. Novamente a enfermeira veio e dessa vez trazendo roupas. Sim, eu estava totalmente nu embaixo dos lençóis. Achei extremamente desnecessário e constrangedor, mas enfim, eles sabem o que fazem.
            - Aqui Saymon, se vista, pois voltaremos à ala C, no seu quarto. Sua mãe e suas tias o estão esperando. Tome...
            “Que horror!” pensei “Isso é um saco!”.
            Bom, a roupa era uma negação, cabiam três Saymon’s dentro dela e tinha aquele cheiro irritante de sabão de coco. Mas enfim, definitivamente era melhor do que sair ainda nu de lá. Vesti-me em silêncio enquanto a enfermeira saía para ir buscar algo. Eu não sabia do que se tratava.
            Minutos depois ela voltou empurrando uma cadeira de rodas. “Agora sim minha mãe se desmancha”, pensei eu. Com certeza seria mais aterrorizante ainda para ela me ver de cadeira de rodas! Mas infelizmente eu ainda não conseguia andar. E cedi sem delongas. Sentei-me na cadeira e quando comecei a ser empurrado para fora da UTI, fui me despedindo de todos e prestando muita atenção nos detalhes.
            Vi muitos aparelhos, paineis estranhos que mais pareciam a cabine de um avião. Vi um velhinho que delirava e pedia água a cada vinte segundos. Vi uma mãe que chorava de preocupação e naquela hora meu coração doeu.  Queria sair dali logo.
            À medida que nos aproximávamos da saída o meu coração pulsava cada vez mais forte. Testei mais uma vez, mas agora com delicadeza, a minha capacidade de respirar. Apesar do nariz muito cheio de gases, eu captava alguma coisa.
            Já podia saborear o corredor a minha volta. Saborear os adoráveis grãos de poeira, a mistura do ar estagnado com o fluxo levemente mais frio que entrava pela porta aberta. Saborear um luxuriante sopro de seda. Uma leve sugestão de alguma coisa quente e desejável, algo que deveria ser úmido, mas não era. Esse cheiro fez minha garganta arder, seca, um eco relativamente ainda forte da entubação, embora o odor estivesse contaminado pela intensidade do cloro, da amônia e antibióticos.
            Era emocionante o quanto eu podia perceber os cheiros agora. Continuamos avançando até parar em frente a porta do quarto 62 na ala C. Ali, na porta, eu podia sentir o gosto de um cheiro parecido com mel, lilás e sol, que era o mais forte e próximo a mim.
            “Toc, toc, toc”, três vezes a enfermeira bateu na porta.
            Ouvi o barulho das passadas no quarto e as pessoas que pararam de respirar por um breve momento. O ar parou, todas as atenções além da porta voltaram-se para o que estava atrás das fibras da madeira. Logo ali, vivo de novo e um tanto confuso. E a porta foi aberta.
            Estava ali minha mãe, minha tia Marta, tia Neli e tia Ezilene. Mas havia no canto do quarto uma figura muito serena que alterou sua expectativa de forma quase imperceptível. Daquela distância, na penumbra, eu não conseguia distinguir quem era.
            Todas se aproximaram de mim, chorando, louvando e me deixando ainda mais confuso. Então a figura se aproximou e gritei:
            - ALINE!
            Abracei-a com força, até doer minha garganta e meu nariz. Sim, eu sabia o porquê de ela estar tão mais serena do que o habitual. Aline sempre soube que eu estaria de volta. Estava ali para se certificar e eu me sentia extremamente gratificado.
            Depois de responder a uma série de perguntas fui para a maca. Estava muito cansado. No aparador ao lado da cabeceira estava tudo intacto. Meu exemplar de “Crepúsculo” que terminara de ler a caminho do centro cirúrgico, um frasco do perfume “Priprioca”, meu preferido; meu MP4 player e meu pijama. Meus olhos se encheram de lágrimas e um turbilhão de memórias e ponderações veio a mim.
            “E se eu não voltasse?”. Todos estariam agora olhando minhas coisas com pesar, ou nem estariam conseguindo olhá-las.
            “Por que eu voltei?”
            “E agora? Por onde me nortear?”
            Sim, eu era O assunto em todas as alas. Todos diziam que a minha volta era um milagre. Afinal, eu tivera três possibilidades de morte diferentes e escapara das três.
            Perguntei que horas eram e passava um pouco do meio dia. Aos poucos tudo ia se normalizando. Tia Marta tinha seus afazeres, tia Ezilene precisava ver seus filhos, tia Neli precisava se preparar para uma cirurgia que faria dali a cinco dias. Aline também tinha seus afazeres, mas foi prometendo voltar.
            Ficamos só eu e minha mãe. Eu queria muito tomar um banho e já tinha a convicção de fazê-lo sozinho. Pedi minha toalha e me dirigi para o banheiro. Lá eu me despi lentamente, usando apenas o braço esquerdo, pois o direito ainda mantinha o soro preso a veia.
            Estava apertado e então, urinei.
            DROGA, DROGA, DROGA!
            Doeu e ardeu muito, pois ainda na UTI havia uma sonda em meu canal uretral. Mas acredite: aquilo não foi o pior para mim. O pior foi descobrir o quanto xixi fede. E ainda mais misturado com antibiótico! Que horror!
            Tomei banho, passei bastante sabonete no rosto para retirar os resquícios da desagradável resina. Lavei o cabelo que estava áspero e suado. Pronto, agora estava vestido com meu pijama que não era mais bonito que a roupa hospitalar, mas pelo menos era algo justo ao meu corpo.
            Abri a porta do banheiro e fui andando lentamente para a maca. Minha mãe me ofereceu ajuda, mas eu recusei. Eu já havia dado trabalho demais.
            Naquele mesmo instante a enfermeira chegou com dois potes de sorvete. Aleluia! A melhor parte! Napolitano, é bom lembrar. Sentei-me na maca e me deliciei. Coisas geladas amainavam o ardor da minha garganta.
            Depois, dormi um pouco, acordei, Aline chegou e conversamos a tarde inteira. No decorrer do dia alguns parentes próximos vieram me visitar, mas as oito da noite acabou o horário de visitas. Tomei mais um banho, mais sorvete, no jantar uma sopa horrível e fedorenta. Assisti um pouco e quando já não aguentava mais de tédio, decidi dar uma volta pelos corredores.
            Tudo estava extremamente silencioso, os sons da avenida logo ao lado do hospital não penetravam as janelas. Senti-me como se estivesse preso em uma bolha, num invólucro de puro alívio e incerteza. Ainda procurava um sentido para tudo aquilo. Voltei ao quarto, deitei-me e caí em sono profundo e conturbado. Sonhei com vampiros, correria, anjos, luzes e pessoas estranhas. Às duas da manhã fui acordado para fazer limpeza nasal. Era ruim ter soro em seu nariz e lutar para não engolir a mistura ensanguentada.
         Dali para frente faria a limpeza seis vezes ao dia por seis dias. Demorou um pouco para que eu conseguisse dormir novamente, mas consegui, e dessa vez sem sonhos perturbadores. Acordei as 7:30 para mais uma limpeza. Tomei café, depois um bom banho e me vesti com roupas normais para esperar minha alta.
      As nove horas, mais uma surpresa: entram no quarto minha amiga Larissa e minha irmã Samara. Nem preciso descrever o chilique que minha escandalosa irmã fez. Larissa virou-se e me disse, em tom brincalhão:
        - Filhote, como é que você me dá um susto desses?
      Apenas sorri e contei tudo o que havia acontecido. Bastante tempo depois enfim eu estava diante da médica, Doutora Fabrícia. Então ela se aproximou, afagou meus cabelos e disse:
     - Eu sabia que um dia, Saymon, você teria que revelar sua condição vampira. Nada de sol por um bom tempo, mocinho.
E eu disse:
- Que ótimo! Não gosto de sol mesmo!
Mas naquele momento eu percebi o quanto eu queria os raios de sol me esquentando, acariciando minha pele, brincando em meus cabelos e prendendo-se em meus longos cílios. Eu queria vê-lo de novo.
Preparamos tudo, me despedi da equipe médica, amigos que ali trabalhavam e desci lentamente a escadaria, cuidando para não passar pelos focos de luz. Era mais uma brincadeira do que ser cuidadoso. Mas na escada eu me deparei com um quadro. Era uma equipe médica operando um paciente e atrás deles estava Jesus supervisionando a cirurgia. Abri um largo sorriso e louvei em silêncio.
À medida que nos aproximávamos da saída do hospital, já no saguão de entrada, eu sentia novamente o cheiro que lembrava mel, lilás e sol, trazendo novos sabores. Canela, jacinto, maçã, água do mar, pão no forno, pinho, baunilha, priprioca, musgo, lavanda, rosas, chocolate... Fiz uma dezena de comparações em minha mente, mas nenhuma se encaixava com exatidão. Muito doce e agradável.
Então, aquele era o cheiro que tinha a vida? Aquele era o cheiro da felicidade? Bom, eu realmente não sabia. Dei uma olhada nas paredes tristes e nos vidros fumês: nada agradável.
Lá fora um táxi me esperava (na sombra, é bom lembrar) e quando saí, uma rajada de vento levantou-se , e o calor da manhã me envolveu.
Vinte e dois de maio de dois mil ‘inove’ era o meu novo aniversário. Eu nascera de novo. Por algum motivo, escapei de três maneiras de morrer de uma só vez. A Morte deveria estar furiosa comigo. Mas eu nem me importava. Mas... Por que eu? Qual o motivo disso tudo?... Eu realmente não sei. Só sei que a partir dali tudo seria diferente. Afinal: 'No tear que tece as nossas vidas não há fios com pontas soltas. Todos estão entremeados entre si e revestidos de significado (Yuko Ichihara)'.


Originalmente escrito em: 10/09/2009, ás: 14h49min


Um sorriso grogue para celebrar o recém (re)nascimento :)
Essa foto completa exatos três anos hoje. E se vocês repararem perceberão que minha cavidade nasal direita está um pouco machucada. Sim, esta é a foto que tirei assim que cheguei em casa, do hospital, depois de ter ficado em coma.
Sinceramente ainda fico sem palavras para descrever o que sinto nesta data, para descrever tudo o que ela significa para mim. O fato certo é que este é um momento que representa o quanto posso contemplar toda a beleza da vida, sentindo toda uma Via Láctea de sentimentos dentro do meu peito... Pulsando e irradiando a vida com a qual eu tanto me importo agora.

Três anos se passaram e enfim, tanta coisa mudou, tanta coisa está diferente. Mas sinto, neste momento, que estou me direcionando para as coisas certas. Sinto uma satisfação tremenda, mas óbvio, sempre disposto a mudar e enfim, ir sempre em frente.
Obrigado a todos vocês que fazem parte da minha nova vida e dos meus novos dias.
Beijos e abraços!

Ao som de "I Remember", Damien Rice.