sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

Desapego


Os móveis escassos, antigos e metodicamente envernizados refletiram a luz azulada que repentinamente irradiou do display do pequeno gravador digital do investigador Thompson. A sala em penumbra parecia sibilar diversas coisas ininteligíveis naquele vazio e modorrento fim de tarde. O ranger das botas emborrachadas que se fazia ouvir todas as vezes em que o homenzarrão a frente de Christopher encarapitava-se na ponta da poltrona  já o irritava. Por alguns minutos, analisando a figura a sua frente, ele pensou com afinco na dificuldade que o investigador deveria ter de ser sutil, fator primordial em sua profissão.
Aquele homem era desproporcional. Ao sentar-se, afundando no estofado, suas calças subiram deixando a mostra boa parte de suas panturrilhas esbranquiçadas e estranhamente bem definidas. Seus cotovelos ossudos pareciam querer rasgar o sobretudo que por algum motivo desconhecido ele se recusou a tirar.  Vez ou outra anotava algumas deliberações e o jovem pôde perceber o quanto suas mãos eram velhas. Tão lânguidas quanto o resto de seu corpo, pareciam ser envolvidas por velhas e finas cordas arroxeadas e Christopher se perguntou se algum dia elas teriam tido viço e destreza. Tinha um rosto bonito, dadas as características desengonçadas de sua estrutura corporal; o cabelo era cortado baixo, bem rente e em linha reta, alternando-se em fios prateados e enegrecidos; tinha olhos complacentes, apesar de toda a dureza que parecia ostentar. Olhos verdes e complacentes.
As covas sombreadas de seu rosto davam a impressão de sempre esconder palavras ou um sorriso abrasador. Christopher chegou à conclusão de que o investigador a sua frente devia seu status em sua profissão à sua aparência, mas não era nada do que aparentava. Lendo-o mentalmente, o jovem entendeu que ele era fruto de diversas circunstâncias desastrosas e que o seu ofício tornara tudo natural para ele, privando-o de novas surpresas desagradáveis para o resto da vida. Decidiu então naquele momento que colaboraria com tudo, sem pestanejar. Thompson tinha adquirido sua confiança.
Emilie e Konstantine decidiram resolver pormenores, como o pagamento das diárias no hotel não muito longe dali, o recolhimento de suas roupas na lavanderia e quem sabe até um chocolate quente no caminho, pois sabiam que o interrogatório seria longo. Naquele momento uma coceirinha começou a aparecer em seus âmagos e elas sabiam que apesar de longa e possivelmente enfadonha, a conversa revelaria tantas coisas que o ar ficaria denso. Tão denso que poderiam parti-lo com uma adaga.

Na sala de estar as sombras se estendiam de modo vertiginoso pelos cantos e pelo assoalho e Christopher sentia-se cada vez mais incomodado com o silêncio que tinha se interposto entre ele e a figura intrépida a sua frente. O investigador curvou-se um pouco, de modo que um feixe de luz tardia e avermelhada pelos tons da nova noite iluminou suas retinas arbóreas e as fez brilhar momentaneamente. Em tons baixos e firmes, Thompson disse:
- Assim que estiver preparado, Senhor Christopher.
O jovem assustou-se um pouco com a segurança que aquele homem transmitia e disse, meneando a cabeça para um canto mais escuro, a fim de esconder sua expressão um pouco amedrontada:
- Tudo bem. – e completou – Só Christopher, – parando de forma insegura – por favor.
Uma caneca de mel quente fumegava diante do investigador e ele, impassível, apenas olhava algumas anotações e alternava uma nova entre um gole e outro. A cada vez que sorvia mais um pouco, suas sobrancelhas uniam-se, denotando certo esforço para que não queimasse a língua ou os lábios. Christopher entendeu que ele ficaria ali durante toda a madrugada, se preciso fosse.
E a noite avançou pelo recinto.
18h30min. Olhares dispersos, barulho irritante de páginas secas atritando uma contra a outra.
19h00min. O tênis de Christopher tamborilava e ele se esforçava para lembrar-se de algo, qualquer coisa que fosse e enfim se livrar da tortura que aquele momento estava representando.
19h20min. O investigador Thompson não apresentava impaciência alguma, mas dessa vez largara as anotações, jogando a surrada pasta de couro sintético no chão.
19h30min. Christopher passou a canalizar toda a sua atenção para o tic-tac do relógio que pendia a frente deles, sempre solitário na parede simples, de cor creme.
19h45min. Thompson agora se levantara e olhava o jardim já escuro e sem forma com expressão perdida e tranquila.
19h50min. Christopher não entendeu muito bem aquela sensação, mas seu cérebro parecia ter dado um giro. Sentiu-se tonto e um pouco desnorteado. Afundou-se um pouco mais na poltrona que rangeu alto às suas costas.
19h55min. Thompson voltou ao seu posto, sentou-se, mas sempre evitando olhar fixamente para o jovem a sua frente. Recolheu sua pasta e voltou a fazer anotações aleatórias.
19h58min. O relógio gritava nos tímpanos de Christopher. Suas minúsculas engrenagens e mecanismos pareciam tiquetaquear dentro de sua mente. Suas mãos agora apertavam o estofado da poltrona, deixando manchas escuras de suor no couro rachado e ressecado.
19h59min. O investigador percebeu a inquietação de Christopher, adiantou-se, preocupado. Ajoelhando-se e colocando a mão sobre o ombro do rapaz, Thompson o olhou nos olhos e disse, enfim quebrando o silêncio de duas horas e meia:
- Fique tranquilo, Christopher. Que quer que tenha acontecido, eu estou aqui para ouvir. A partir de agora esse lugar é uma espécie de forte, nada vai sair dessas paredes. E o melhor: esse lugar é seu. – disse o investigador em sentenças rápidas, de modo que nenhuma insegurança eventual pudesse preencher qualquer lacuna deixada por falta de atenção.
Respirando fundo, Christopher relaxou um pouco mais os músculos, mas de repente enrijeceu-se novamente levantando os pés a alguns centímetros do chão de linóleo.
20h00min. Nitidamente Christopher ouviu a voz de Sophie sussurrar em seu ouvido, com hálito doce e o tom jocoso de sempre, dizendo: “Vamos?”.
Quando um trovão rouco soou ao longe, Christopher segurou o antebraço do investigador Thompson e disse, de forma clara, firme e concisa:
- Eu me lembrei.

- Eu queria ser um besouro nesse momento para ouvir a conversa daqueles dois. – disse Konstantine forçando uma maturidade que ainda lhe faltava.
- Mas a expressão não diz “ser uma mosca”? – questionou Emilie de cenho franzido.
- Diz, mas eu acho moscas nojentas. E de qualquer forma um besouro também se adapta muito bem em todas aquelas frestas do chão da casa do Christopher. Aliás, que casa bonita aquela, não é mesmo? Como será que o Christopher conseguiu comprar ela por um preço tão baixo?
- É, isso eu também não entendi. A casa é grande, bonita e parece ter uma história notável. Isso é mais um mistério que ele vai precisar esclarecer pra gente.
Naquele instante uma lufada fria entrou pela cafeteria enroscando-se nos pés dos clientes e passantes. Um trovão rouco soou ao longe.
- Nossa, vai chover de novo. Como tem chovido nos últimos dias e eu adoro isso! – comemorou Konstantine levantando sua caneca para o céu.
- É porque a gente reencontrou o Christopher. Das coisas que me lembram do Christopher, a chuva vem em primeiro lugar.
- Verdade – concordou Konstantine. – A propósito, você sentiu a mesma coisa que eu? – acrescentou ela com o tom que sempre usava para disfarçar algo que a assustara um pouco.
- O perfume da Sophie? Senti. Nitidamente.
- Acho melhor a gente voltar para a casa do Christopher.
Pagando a conta apressadamente, ambas saíram trôpegas para a calçada a tempo de ver as luzes se apagando pela avenida. A queda de energia deixou tudo escuro, dando visão a um céu avermelhado e furioso.
As nuvens avolumavam-se ameaçadoramente e pareciam querer tragar tudo. Gradativamente o vento esfriava e os trovões ficavam mais próximos, alternados por relâmpagos que riscavam o céu e traziam o dia por alguns segundos, pintando tudo de um branco forte que parecia cegar momentaneamente e, além disso, a escuridão alternava-se com os farois dos carros que avançavam pela avenida. Um pequeno caos começava a se formar e Emilie e Konstantine sabiam que seria difícil conseguir um táxi agora. Mas, milagrosamente um se aproximou e elas correram abrindo caminho entre as gotas pesadas e negras que começavam a perfurar suas roupas, como contas geladas. Desprezaram a velhinha que se aproximava com um persa gordo e impassível entre as mãos, mas compadeceram-se e pediram para que ela entrasse. Talvez tivessem sorte e ela nem morasse tão longe da casa de Christopher.
O carro avançou em meio ao inferninho de farois aglomerados e pedestres em dúvida por conta do semáforo inútil que não tinha como funcionar sem energia.
- Vai ser uma tempestade e tanto – disse a velhinha com ar um tanto misterioso enquanto os olhos do persa preguiçoso e sonolento cintilavam no interior sombreado do carro.

Gregory Thompson nunca foi dado a irracionalidades ou mesmo misticismos, mas poderia jurar que sentia mais alguém naquela sala. Tentou captar movimentos mínimos, olhando de forma inexpressiva para que não denotasse credulidade ou até mesmo, na pior das hipóteses, medo. Observou Christopher com bastante atenção, focou-se nos mínimos detalhes de sua expressão e mostrou mais uma vez seu olhar abrasador na esperança de que isso desse uma ajuda extra nas memórias do jovem que no momento assumira, de fato, uma postura mais segura e um tanto aliviada.
Christopher lembrara-se de uma forma realmente inesperada, de acordo com todas as vezes em que tentou, por conta própria, remontar momentos de meses atrás, não obtendo sucesso algum. Naquele instante, muitas lacunas foram preenchidas dando lugar a pensamentos e lembranças claras de acontecimentos que não deveriam ter mergulhado tão fundo em seu subconsciente, mas que de alguma forma afundaram como pedras.
- Então me conte Christopher, conte-me. – pediu o investigador munido de caneta e papel, apoiando seu pé sobre o joelho e equilibrando os papeis sobre sua panturrilha.
- Me deixe falar tudo primeiro, Thompson. Por favor, não me interrompa. Não quero que nada disso fuja novamente de meu domínio.

Ansiosas, Emilie e Konstantine empertigavam-se no banco detrás do táxi, enquanto o carro avançava abrindo caminho pelo véu gelado que agora se estendia por toda a cidade. A vermelhidão no céu ficara um pouco mais branda, dando lugar a nuvens castanhas e chorosas, deslizando preguiçosamente. Ainda não conseguiam distinguir muito bem os traços da senhora que se sentara no banco da frente, mas tiveram a certeza de que ela era muito sábia simplesmente pelo seu tom de voz. Até o momento ela ainda não tinha se manifestado acerca de seu endereço e parecia não se importar muito com isso, afinal de contas era como se estivesse curtindo um passeio com velhas e saudosas conhecidas. Quando a rua da casa de Christopher se aproximou, Konstantine deixou escapar um suspiro de alívio ao avistar a casa imponente se erguer no escuro, alguns metros adiante. Reparou que apenas uma janela da casa deixava escapar uma luz bruxuleante, como se velas iluminassem o seu interior. Pensou então que a conversa ainda avançava e que não devia ter se desenrolado muito.
O táxi encostou-se ao meio fio, levantando bastante água que corria com força pela sarjeta. Quando enfim seguraram as cédulas nas mãos a fim de pagarem a devida quantia pela corrida e então se prepararem para correr ao velho e pesado portão, a senhora ao lado manifestou-se:
- Eu também descerei aqui, caro Jonathan. Ah, moças, dividiremos em partes iguais, tudo bem?
Ambas entreolharam-se e concordaram rapidamente sem se preocupar com o modo em que aquela senhora transitaria pelas calçadas sorrateiras abaixo da violenta tempestade. Preocuparam-se e decidiram ajudá-la, uma vez que não escapariam da água que preenchia todos os espaços disponíveis com ar fora do veículo. Pagando, as três saíram com receio da rua que se tornara um rio caudaloso, e quando deram a mão para ajudar a senhora, ela disse em tom sapiente:
- Vamos a minha casa, ela é aqui do outro lado da rua.
- Mas... – balbuciou Konstantine começando a protestar.
- Por favor, vocês sabem que ele está ocupado – pediu mais uma vez a senhora.
Emilie apenas concordou com o olhar e enfim decidiram segui-la para o outro lado da rua, equilibrando-se pelo asfalto que se tornara liso abaixo da corrente de água. O persa estava extremamente impaciente entre as mãos de sua dona e Konstantine se dipôs a levá-lo enquanto não chegavam à outra calçada. Finalmente chegando ao portão simples, a senhora procurou seu molho de chaves e destrancou a fechadura apressadamente.
- Entrem, depressa – aconselhou.
Emilie e Konstantine olharam para trás, curiosas e preocupadas, a tempo de ver a silhueta de Christopher projetada na cortina. Emilie conheceria de qualquer distância aquela posição que seu amigo assumia quando enfim controlava a desordem de algo: corpo ereto e a mão direita sobre o ombro esquerdo. Sorriu silenciosamente no escuro. Ele tinha se lembrado.

Christopher levantou-se, assumindo assim uma posição que dava a ele ar de triunfo e sabedoria. Dirigiu-se até a parede próxima com o corpo devidamente ereto e a mão direita pousada sobre o seu ombro esquerdo. Andou a passos medianos se movimentado pela sala como um fantasma numa casa antiga, cheia de sombras projetadas pelas velas chorosas nos castiçais simples e encostou-se a parede próxima. Ao seu lado uma grande janela dava vista às roseiras e dali ele conseguia distinguir poucas formas. Entretanto, avistou além do jardim, por entre as frestas do portão, um farol parar na chuva e ouviu vozes abafadas trazidas pelo vento e entrecortadas pelo som da tempestade. Esperou soar a campainha, mas as vozes cessaram e somente o som das gotas arranhando as vidraças voltou a reinar. Por alguns segundos teve a nítida sensação de que alguém o observava além do jardim, através da cerca viva. Alguém que o entendia perfeitamente.

Voltando sua atenção novamente ao interior do cômodo, começou a falar após ouvir o click do gravador do investigador a sua frente.
- Gregory, você poderia trocar o meu nome e o de Sophie por “Inconsequência” e acrescentar o sobrenome “Sonhos” – começou ele.

- Eu disse que seria uma tempestade e tanto – disse a senhora enquanto entregava toalhas felpudas e cheirando a alfazema para Emilie e Konstantine.
- Será que vai durar muito? – indagou Konstantine.
- Se bem conheço essas chuvas que chegam assim, aos poucos, ela vai durar a noite inteira.
Emilie enxugava os longos cabelos com destreza e sem muita pressa. Sentia-se um pouco cansada e até esfomeada, mas perguntou algo mais pertinente para o momento:
- A propósito senhora, estamos aqui e até então não sabemos o seu nome, nem quem é você – disse ela tentando não parecer ríspida.
- Ah, minhas queridas, mil perdões! – desculpou-se a senhora de olhos ternos – Que desleixo o meu. Muito prazer, me chamo Deliverance. – concluiu ela fazendo uma mesura enquanto colocava as mãos sobre o coração como se cumprimentasse ambas ao mesmo tempo.
Konstantine, que era muito ligada a nomes, achou que não haveria nome mais apropriado para aquela senhora. Apesar das circunstâncias no mínimo peculiares em que se encontraram, ela não parecia nada ameaçadora. No momento em que disse seu nome foi como se o closet em que se encontravam tivesse se tornado mais aconchegante e era como se suas roupas tivessem começado a secar rapidamente com o calor que exalava da expressão e do gesto de Deliverance.
- Bonito nome, devo dizer – elogiou Konstantine.
- Digo o mesmo – completou Emilie.
- Obrigado, meninas. Muito obrigado. Vocês devem estar com fome, não é mesmo? Com sorte, antes de sair, preparei um bolo e agora farei um bom café para nós. Noites chuvosas ficam melhores ainda com bolo e café. Podem ir até a sala e acender a lareira? Já chego até lá.
As duas concordaram prontamente como se fossem mecânicas e enrolando as tolhas em seus ombros dirigiram-se até a sala onde colocaram algumas toras de pinho na lareira apagada e acenderam com ânsia, por conta dos dedos já dormentes pelo frio. Sentaram-se e enquanto as chamas cresciam lentamente e a sala ia sendo iluminada e mostrava detalhes que só se encontravam em casas de anciãs, avós ou solteironas com gatos.
Um aparador repleto de fotos em preto e branco, em sépia e de um colorido desbotado, como se fossem uma linha do tempo ali mesmo, exposta a quem quisesse admirar; pinturas pré-rafaelitas preenchendo algumas paredes, delicadas e etéreas; uma escrivaninha apinhada de papeis e livros antigos, que pareciam quase falar; um tapete simples, quase marfim, estendendo-se pelo chão em frente a lareira que nesse momento servia de descanso para o persa gordo e sonolento que precisava terminar sua secagem e enfim tirar o sono que parecia adorar. Interrompendo a admiração pelo lugar, Konstantine disse:
- Ok, ok... Tenho certeza que não sou só eu que estou achando tudo isso muito estranho, mas pelo amor dos deuses, quem é essa mulher?
- Sei tanto quanto você, Konst – balbuciou Emilie com receio de que fossem ouvidas.
- Ela parece conhecer a gente, reparou que não perguntou nossos nomes?
- Percebi sim, e estou tentando assimilar o fato dela ter aparecido bem naquele instante em que íamos pegar o táxi. Sei lá, essa casa, o fato dela morar aqui, bem em frente a casa do Christopher, parece ser tudo armado de última hora, sabe? É como se ela simplesmente tivesse começado a existir nesse momento!
Mas naquele instante outro objeto chamou a atenção de Emilie. Com as chamas mais altas, a luz refletia-se na moldura de prata de um porta retrato bonito, que emoldurava uma foto realmente bela. Deliverance, anos mais nova, estava sentada em uma poltrona e uma criança muito bonita estava sentada em suas pernas. Ambas sorriam de modo sereno para frente, como se olhassem dentro da alma de alguém muito especial e Emilie achou o rosto da criança estranhamente familiar. Apanhou o porta retrato entre as mãos e aproximou-se da janela para tentar captar alguma luz que não assumisse tons avermelhados. No exato momento um relâmpago desenhou-se no céu inundando de luz branca o aposento e mostrando as cores reais do retrato. O vestido delicadamente rendado e branco de Deliverance, as roupas da criança em tons lilases e brancos e acima do etéreo sorriso, olhos fortes e verdes. Ambas tinham os mesmos olhos e pareciam compartilhar do mesmo viço, da mesma espécie de magia.
- Encontrou minha foto e a de minha neta, Emilie? – indagou Deliverance da porta com uma bandeja entre as mãos.
Konstantine sobressaltou-se, mas se manteve no mesmo lugar, um pouco apreensiva demais.
- É uma linda foto Deliverance, mas, me diga... Como sabe o meu nome?
- Eu também sei o de Konstantine.
A morena de melenas violetas assumiu uma expressão séria, como se estivesse em uma reunião com o juiz da comarca.
- Poderia me responder como? – indagou Konstantine de forma invocativa.
- Mais uma vez eu peço desculpas a vocês por todo esse incômodo e esse mistério inoportuno, mas, vamos, esquentem-se com o café e o bolo, sei que devo explicações a vocês.

31 de outubro de 2008...
O charmoso Oldsmobile tossiu quando se aproximou da calçada e então apagou. Christopher se sentia um pouco tenso, não gostava de viajar a noite e ainda mais debaixo daquela tempestade que estava chegando. Ele podia vê-la avançando mansa por sobre os montes no limite da cidade e isso queria dizer que duraria a noite toda, sem trégua, resultando em estradas lisas e traiçoeiras. Ele realmente não sabia para onde iriam, não sabia realmente qual eram os intuitos daquela fuga, mas entendia que ela significava realmente muita coisa. Talvez até boa parte do futuro de ambos.
Avançando pelo caminho gramado, o jovem pensava se não deveria sair dali e apenas telefonar dizendo que passara mal, que aquilo estava lhe dando comichões, mas Sophie jamais o perdoaria. Como que por adivinhação, ela abriu a porta empolgada, alerta a todas as possibilidades que um mundo inteiro a frente poderia oferecer. Com destreza arrumara suas malas muitas horas antes com o intuito de não perder mais tempo algum naquele lugar, com aquelas pessoas, com aquelas questões que nunca se desamarravam, com a mesma superproteção, com a mesma desconfiança, com os acessos de fúrias seguidos de bofetadas e portas trancadas por horas a fio. Ela estava disposta a deixar seu pai para trás, sabia coisas demais sobre ele e isso a perturbava todos os dias e noites de sua vida. Ele sabia de sua ciência e por isso ela teria de fugir, ela teria de ser esquecida, teria de enfim, desaparecer.
Mas, como tudo para Sophie, desaparecer tinha um significado diferente. Para ela, despir-se de medos, traumas e raivas era o ato propriamente dito de desaparecer, pois esta tríade representava o resumo de seus dias nos últimos anos naquele lugar, após a morte de sua mãe. Sentia falta dela, muita falta. Certificou-se mais uma vez de que aquele velho porta retrato estava em sua mochila envolto em uma sacola de cetim roxo, delicadamente bordada com o sobrenome “Bartlett” em linhas cintilantes e prateadas. Era uma foto de sua mãe e naquele momento Christopher aproveitou para apreciar aquele retrato mais uma vez. Desde a primeira vez que o viu, ele se encantou com a beleza da mãe de Sophie. Aquela foto traduzia perfeitamente a personalidade daquela balzaquiana: etérea, virginal, envolta num ar místico. Assemelhava-se a uma pintura sacra. Um anjo sem asas, para melhor exemplificar. Como se chamasse a si mesma de volta para a realidade, Sophie apanhou as chaves em suas mãos e trancou a porta depressa, como se cada componente do chaveiro de prata estivesse queimando seus dedos. Ambos desceram em silêncio os poucos e pequenos degraus que levavam ao mal cuidado jardim e então ela arremessou o molho longe, expressando repulsa. Fechou o portão com estrondo, mas ainda assim não conseguindo perturbar a quietude que se instalara na rua, como se tudo estivesse em expectativa para desaparecer embaixo da tempestade que se aproximava.

Gradativamente, Christopher ia enfileirando os fatos em sua devida cronologia. Impressionou-se com os detalhes que agora se mostravam tão nítidos, fazendo-o questionar se isso estaria acontecendo por conta de todas aquelas lembranças terem ficado guardadas de um modo tão velado, quase inexistente. Mas, por hora, o que lhe chamava atenção eram as expressões que o investigador Thompson assumia a cada passo da trajetória narrada daquela noite a quatro anos atrás. Em uma parte reservada de sua mente, Christopher começava a se perguntar se todo aquele interesse e atenção integral voltada a tais questões eram apenas mero ócio do ofício. Entretanto, o que lhe falava mais alto naquele momento eram as lembranças que desfilavam diante de seus olhos, mais uma vez organizadas, como que catalogadas e em fila indiana. Elas apenas pediam gentilmente que fossem narradas, lidas, interpretadas e resolvidas. Fechou os olhos, ouviu a chuva ao longe, esperou que uma imagem se formasse diante de suas pálpebras cerradas e então continuou a narração.

- Uau! Eu não acredito que a Emilie e a Konstantine nos emprestaram o velho e lindo Oldsmobile! – saudou Sophie, empolgada.
- Ele também é meu, Sophie. Lembra que eu dei a maior parte do lance no leilão? Foi mesmo uma sorte acharmos esse carro e ainda por cima exatamente no dia em que consegui uma ótima grana. - lembrou-se Christopher com saudade daquela noite em que festejaram até cair por conta da barganha adquirida.
- Se esse carro falasse hein, mocinho? – brincou Sophie enquanto simulava um soco no ombro do rapaz.
O sorriso que se formara nos lábios de Christopher esmaeceu lentamente quando ele olhou para trás e assim analisou os prédios próximos, as casas que subiam colina acima, as ruas sinuosas que se perdiam a cada esquina escura e pouco convidativa. Ele estava esboçando uma despedida, embora não se importasse muito, afinal de contas sempre partilhara do sentimento profundo de se afastar dali e não pisar os pés nunca mais naquele lugar.
Perceberam que até aquele momento ambos estavam se ocupando de uma coisa deveras dispendiosa: procuravam todos os dias por uma transformação que os tornasse um arremedo de si mesmo, a ponto de nem se reconhecerem mais. Momentaneamente se sentiam como se tivessem 130 anos repousados de forma incômoda sobre os seus ombros e isso definitivamente não estava nos planos de nenhum dos dois. Agora entendiam com clareza que a desordem é tenaz. Todos os laços, todas as amarras, os controles e pretensões... Nada adianta se o vento não soprar. Era isso o que eles fariam: abririam as janelas da alma para deixar que a brisa entrasse com destreza e determinação. O vento que então enfurnaria suas asas seria a sua alforria daquele mundo. Eles sabiam que era alto, mas iriam pular. Perguntavam-se o que é que todos iriam dizer e aonde eles chegariam, mas essa era uma resposta que nem os olhos podiam ver... Decididos, não voltarão para casa, para o lar, para o corpo e todas as palavras que a vontade conseguir pensar.
- Ei... – chamou Sophie com voz cálida e segura – Tudo vai ficar bem, eu prometo.
- Engraçado, sinto como se fosse eu quem devesse estar falando isso...
- Ai, deixa de ser machista, cara! Me deixa pegar as rédeas de tudo pelo menos agora!
- Ei, ei, ei! Nada de estresse agora, ô Senhorita Dedo Pulos! – brincou Christopher fazendo cócegas no nariz de Sophie.
- Cala a boca, Leves Mãos! – disse ela entre gargalhadas, abraçando-o.
Aproximando-se, ambos prometeram em suas mentes, olhando-se nos olhos, que tudo realmente ficaria bem. O forte abraço que se seguiu foi um dos mais puros, seguros e libertadores dos últimos tempos. Eles precisavam daquele momento, daquela fuga, daquele desaparecimento.
Adentraram o carro e sentaram-se conforme a exigência de Sophie: ela dirigiria. O Oldsmobile avançou pela rua, deixando para trás todo um passado que merecia ser enterrado. A todo o momento, ambos prometiam para si mesmos que tudo ficaria bem e que agora nada representaria impedimentos.
- A propósito Dedo Pulos, qual o nome do seu pai mesmo? Você sabe, não costumo gravar o nome de pessoas que não vejo com frequência...
- Nem eu o vejo com frequência, Christopher. Ele deve estar trabalhando num caso agora, por isso o tenho visto com menos frequência ainda. Ah, o nome dele, não é?
- Sim. E o que ele faz mesmo?
- Ele é um investigador particular agora, mas já trabalhou de perto com a perícia no departamento de polícia da cidade e de alguns estados vizinhos. O nome dele é Gregory, Dedo Pulos! Já disse mil vezes... Gre-go-ry Thomp-son, quer que eu soletre?
- Engraçadinha! Fica quieta, presta atenção na estrada.
Enquanto Christopher aumentava o volume da música e Massive Attack preenchia todos os espaços vazios do carro, lá fora as gotas também reivindicavam seu espaço musical. Uma cortina densa e gelada estendeu-se por toda a cidade e enquanto isso o destino de Christopher e Sophie se aproximava cada vez mais.
Ambos sentiam a chuva se adensar, mas aquilo realmente parecia não importar. Alternavam a atenção à estrada entre brincadeiras e lembranças do ensino médio, cantavam as músicas que iam tocando de forma aleatória. Embora tranquilos, algo ainda latejava na consciência de Christopher, inquietando-o vez ou outra, como espasmos de preocupação. Observou com tanta atenção os desenhos sinuosos que a chuva pincelava no para-brisa que terminou por dormir, mergulhando em sono inquieto. Minutos depois uma claridade inoportuna incomodou seu sono e ele abriu os olhos, pouco satisfeito. Pôde diferenciar em meio à chuva dois farois que avançavam metros atrás do Oldsmobile, abrindo caminho entre as gotas pesadas e ininterruptas, que caiam como correntes.
- Mas que droga, esse infame não sabe abaixar o farol, não?
- Christopher, – chamou Sophie com um tom sério demais. – é ele.
Entendendo imediatamente, ele indagou:
- Vamos parar Sophie, a gente conversa civilizadamente com ele.
- A última coisa que eu vou fazer é parar. Quero esse assassino longe da gente!

Ao pronunciar aquela palavra que até então estava entranhada em suas memórias, Christopher arrepiou-se. Fechou os olhos longamente a fim de não encontrar os de Gregory, que tremia levemente a sua frente, curvado, apoiando os cotovelos nos joelhos e com as mãos juntas abaixo do queixo, como se formassem um pequeno templo ou uma pequena gaiola. Prosseguiu.

- Isso é imaturo, Sophie! Por favor, vamos parar e ver o que ele tem a dizer!
Naquele instante os pneus do carro vacilaram e então o Oldsmobile começou a ser sacudido por pequenos solavancos que elevavam ambos em pequenos intervalos. Intercalando-se com o forte tamborilar da chuva, eles podiam ouvir o som das vigas de madeira da ponte na qual havia adentrado.
A escuridão era ameaçadora. Colando o rosto no vidro para vencer a condensação, Christopher tentava enxergar dos lados e além, mas tudo era apenas um manto negro que cintilava em mil estilhaços gelados iluminados pelo farol do antigo carro. Por algum motivo ele achou que aquele caminho era errado, que aquela ponte era perigosa demais para uma noite como aquela. Olhou para Sophie e esta parecia ter se fundido às engrenagens do carro. A estrada a frente era o seu mais voraz objetivo, em seus olhos estava injetada uma raiva que Christopher jamais havia visto. E ela acelerou ainda mais. Ambos foram sacudidos com mais violência, elevando-se a alguns centímetros do banco. Abaixo dos pneus as vigas ribombavam ameaçadoras, como se fossem se soltar a qualquer instante.
- Eu não vou parar, Christopher! Eu não posso, eu parei a minha vida por ele até agora, eu preciso ir embora!
As mãos de Christopher estavam geladas, e então ele procurou abrigo entre as dobras que a blusa de Sophie formava. Um riso débil escapou de seus lábios com o repentino carinho, mas não amainou sua fúria perante a estrada. Os farois que vinham logo atrás estavam a poucos e intimidadores centímetros, forçando-os a parar. “Ela jamais se entregará”, percebeu Christopher. Então começou a entender que teriam de surgir medidas rápidas e drásticas. Começou a entender que, a partir dali, começaria a ter de cultivar o desapego rápido e indolor.
- Christopher! – chamou Sophie com a voz trêmula.
- Sim? – respondeu Christopher mais seguro do que ela pensou que ele estaria.
- Eu te amo muito, de verdade.
- Eu também te amo, Sophie, mas, que é que está acontecendo?
- Me promete uma coisa?
- Me diz o que é primeiro, por favor...
As tábuas continuavam vacilando e o veículo logo atrás simplesmente não esboçava trégua alguma.
- Essa ponte não tem saída, ela está inacabada.
- Então é melhor pararmos, Sophie. – disse Christopher tentando não fazer com que a calma se esvaísse.
- Vamos saltar, nós vamos conseguir nos livrar dessa!
A verdade é que Christopher não estava arrependido de estar ali. Vencera muitas coisas para que então pudesse estar indo rumo a um futuro sem amarras, livre de espectros opressores.
- “Se você pular, eu pulo!”, lembra? – disse ele com um sorriso que cintilou no interior do Oldsmobile.
- Eu nunca vou me esquecer, nunca!
Sophie apenas dirigiu sua atenção para o ponto em que podia diferir o fim da ponte, destruída, retorcida, exatamente como estavam muitas de suas concepções naquele momento. Aquele salto iria reconstruir todas as suas próprias pontes.
O velho carro não parecia apresentar sinal algum de falência, mesmo com a longa idade. Christopher pousou sua mão sobre a de Sophie e então apenas esperou.
Olhou para trás a ponto de ver o outro veículo parar repentinamente. Apertou a mão de Sophie com força e então prendeu a respiração.
De repente não havia mais o barulho das tábuas e vigas antigas, não se sentia mais o atrito com o chão acidentado, a música parara de tocar, ambos flutuavam no tempo e no espaço, indo de encontro à parede gelada e corrente. Esperaram aqueles longos segundos enquanto suas mentes estavam a mil, fazendo perguntas em centésimos, ponderando sobre o futuro em milésimos. Não sabiam, realmente não sabiam. Apenas queriam.

- Antes que me perguntem, eu também conheço Sophie, a amiga de vocês – revelou Deliverance com voz terna e sem oscilações.
- Qual é o seu sobrenome, senhora Deliverance? – perguntou Emilie tentando esboçar despreocupação.
De forma quase inocente e doce, Deliverance respondeu enquanto enchia uma xícara de café:
- Bartlett. Meu nome completo é Deliverance Bartlett. Por que?
- Você é a avó de Sophie. – concluiu Emilie veementemente.

Continua...

Ao som de "130 Anos", Agridoce.


3 pessoas se inspiraram:

T(o)d(a)s as palavras (n)ovamente ditas disse...

amo/sou todo esse mistério escrito. nasss

Anônimo disse...

Saymon, querido, vou acorrentá-lo a uma máquina de escrever pra você terminar logo essa história, seu carrasco perverso e insensível! kk'
ADOREI, ADOREI, ADOREI *-*

Babi Paixão disse...

Tô com a Dilly e não abro! Mas eu posso lhe acorrentar a um notebook ok? Gente eu MORRI como sempre morro ao ler esse "continua" D: D: D: