quinta-feira, 1 de setembro de 2011

Voltando


Por um segundo ele não entendeu, por um segundo ele se sentiu como se fosse um nada a mercê de tudo. Em algum ponto de sua memória as coisas lentamente começaram a voltar para o lugar, fazendo enormes barulhos que ecoavam dentro de sua mente, ribombando nas paredes de seus pensamentos e incomodando. Acordando o coração, instigando seus sentimentos. Sinceramente, ele preferia enquanto eles dormiam, enquanto eles não o faziam tão vulnerável ou mesmo tão abastado das coisas. À medida que as figuras emparelhadas se aproximavam de seu portão, ele perdia cada vez mais a capacidade de se mover.
Estava fincado ali, e observava tudo voltar à tona lentamente, entrando em sua casa, bagunçando seus sentidos, meio que debochando dele mesmo. E ele sem poder fazer nada. Era algo no mínimo desesperador. Christopher tentava chamar por Sophie, mas como sua voz estava embargada ele só conseguia produzir sussurros. Pensava em mil coisas agora, mas principalmente na eficácia da espécie de feitiço que ela o obrigou a fazer. De algum modo ela sabia as coisas que ele teria de encarar, onde ele ia chegar, para que ponto de sua vida ele teria de olhar fixamente por longos minutos, sem poder parar o seu retorno, sem poder apagar a sua iminência.
Ele apenas fechou os olhos, esperou que toda aquela vertigem se esvaísse rapidamente, como se fosse apenas uma sensação matinal de um dia chuvoso. Ergueu a cabeça, jogou-a um pouco para trás e relaxou. Curvou-se um pouco, a fim de descansar os músculos. À medida que ficava menos tenso ia conseguindo recuperar os movimentos com mais precisão. Mas quando enfim já se libertava de sua cadeia mental, um som melancólico e metálico ricocheteou pelas paredes da casa. Alguém tocava a campainha.
No mesmo instante seu corpo enrijeceu-se novamente, mas dessa vez ele se esforçou, mesmo com a cãibra repentina. Christopher não conseguia dizer nada, apenas pensava e se perguntava se era realmente essa a dor que o passado causava quando batia a porta, se era esse o poder dele: o de te deixar vulnerável, sem ação, sem movimentos. Na verdade ele nem sabia como dar nome aquela sensação. Só sabia que a partir dali as coisas se reuniriam em volta daquele eixo e passariam a girar em torno dele por um interminável tempo.
Enfim virou-se e observou o corredor vazio. Sophie não estava ali e parecia estar ignorando o som da campainha.
- Sophie? – Chamou Christopher.
Só o som da brisa fria assobiando por entre as frestas da casa respondeu. Mais uma vez a campainha soou, metálica e fantasmagórica.
- Cacete! – Sobressaltou-se num susto.
Enquanto avançava voltando pelo corredor ele analisava cada detalhe, como se procurasse motivos para se estender ali dentro. Sentia-se como se tivesse sido esticado, como se seus tecidos estivessem tênues. De certo modo algo mágico estava acontecendo, pois geralmente, se observarmos a ordem dos fatores, é você quem procura pelo passado. Chegando ao topo da escada, observou o assoalho lustroso lá em baixo. De novo teve a estranha sensação de como queria aquele lugar cheio de amigos, com um bom vinho, piano e violão. Devia ser por isso que aquela casa o atraiu tanto. De algum modo ela tinha alma, estofo; mas não como as outras. Nessa era palpável, podia-se ouvir. Os degraus rangiam charmosamente, o andar de baixo se aproximava. Tocou a maçaneta, sentiu o frio metal contra a palma de sua mão. Lentamente girou-a e puxou a porta para si, vagarosamente, esperando que o passado não viesse com tanta violência.
Enquanto vagarosamente a porta cedia espaço ao frio que soprava lá fora, a mente de Christopher foi se reorganizando. De algum jeito especial ele almejava por aquele reencontro, pelas coisas que seriam explicadas, pela boataria que seria desmentida, pelos abraços demorados, pelas vidas se reencontrando num futuro tão diferente de todas as coisas, dias e memórias passados juntos. Seria no mínimo memorável. O frio inflou suas vestes, o cinza do céu ofuscava um pouco a visão que estava acostumada a penumbra da casa. De longe ele observava as silhuetas de duas pessoas desenharem-se entre as frestas do velho portão de madeira. Era tudo como num filme velho, todas as coisas dançando poeticamente embaixo da garoa fina. O cheiro das roseiras em flor aguçado pelo frio, seus pés descalços na fria ardósia, os cabelos desgrenhados, as roupas um pouco surradas, mas que davam um certo charme a ele. Tocou a velha e enferrujada maçaneta, girou-a teatralmente devagar e então abriu para ver o que lhe esperava.

Bem acima do jardim, na janela central da casa, Sophie observava a cena com um sorriso de satisfação dançando em seus lábios. Conseguira fazer o que planejava há algum tempo, e o que a impulsionou a voltar. Olhou, observou atentamente cada detalhe do lugar. Transitou por alguns cômodos, e depois, entrando no quarto de Christopher, sentou-se em sua cama. Pegou papel e caneta e com floreios rápidos e finos escreveu no papel puído: ‘Consegui, mas sentirei muito a sua falta. ’ Levantou-se languidamente, olhou com olhos lacrimejantes para a porta grande e antiga daquele quarto já tão simbólico para ela. Apesar de relutar bastante, ela teria de ir, teria de se despedir. Era a hora de fazer a segunda escolha, a de nunca mais ser vista, a de ser esquecida. Afinal de contas, todos os que se vão tem de lidar com essa expectativa, com essa assertiva... Com esta afirmação.

Naquele instante o universo parou. A chuvinha amainou, o vento cessou o frio que não soprou. O trio estava envolto num invólucro de silêncio, saudade e dúvidas. Christopher olhou ambas bem fundo nos olhos enquanto lágrimas começavam a lamber seu rosto lentamente. Silêncio. Elas apenas seguraram suas mãos, uma de cada lado, e também choraram silenciosamente. E então se renderam num abraço saudoso, cheio de pormenores, recheado de significados, longe do vazio, do medo e da insegurança de seus últimos dias, de seus últimos anos. Assim, o universo voltou a conspirar, todos podiam sentir novamente os elementos que caracterizavam aquele inverno que estava grudado em tudo, como um lençol gelado.
Muitas coisas estavam sendo ditas ali sem que se precisasse proferir uma palavra sequer. Entre eles sempre foi assim, de certo modo. As coisas se completando, se fazendo de forma muito completa e autodidata. Os três entraram silenciosamente, ainda de mãos dadas, saboreando o momento de formas muito próprias, mas ao mesmo tempo muito iguais. Quando entraram, trazendo um pouco de chuva e dia frio consigo, eles realmente não sabiam por onde começar, o que falar e o que expressar. Sentaram-se meio trôpegos, como se receosos daquele momento, daquele encontro. Mas enfim Christopher adiantou-se:
- Só eu que não mudo mesmo... – ele disse em tom jocoso.
- Ah, que nada Christopher! Olha só essa sua cara de homem! E essa barba, quem é que te deu? – Indagou Konstantine com seu ar sempre brincalhão.
Emilie observava tudo ainda meio atônita, escolhendo as palavras certas, como sempre fizera, como sempre faria.
- Ah Christopher... – começou ela – incrível mesmo é essa tua cara de menino que insiste em aparecer.
- Rá! Não falei?
- Mas eu não falei que você não tinha mudado...
- Deixa de ser chato, Christopher, você tem muitas outras coisas pra falar pra gente. – disse Konstantine.
Mas pareceu a cada um deles que esta proposta não deveria ser colocada em questão. Não ainda.
Por alguns instantes Christopher manteve o olhar perdido em tantas memórias que parecia ter se perdido de si mesmo. Num instante de expectativa, Emilie e Konstantine aguardaram no que parecia ser um longo período. Então a jovem morena de cabelos longos se adiantou, segurou a mão de Christopher com força abrasadora.

A mente dele continuava rodopiando, tentando achar um local de pouso seguro. É como se fosse uma manhã clara que o fazia clamar por escuridão, dessas que moram nos cantos da gente, dessas que escapam de portas nunca abertas. Pairava acima de si mesmo e isso o incomodava, precisava dos pés no chão. Engraçado era lembrar que ele sempre preferia o avesso, as coisas que fugiam a regra. Sempre procurando uma próxima saga. A vida que Christopher levara o ensinou a aprender com tropeços e desprezar mãos que o quisessem afagar o âmago. Só Emilie podia fazer aquilo naquele momento, sem precisar correr para longe de todas as sombras que moravam dentro dele. Ela sempre teve luz suficiente para enxergar tudo com clareza.
Olhou nos olhos de Konstantine e disse coisas inaudíveis, mas que eles sempre saberiam o significado. Via nela o anseio de ir sempre além, a vontade de nunca parar. Apesar de ser tão reconfortante e se apresentar como um porto sedutoramente seguro, nunca o faria ancorar. Não naquele instante. Christopher tentava se manter ali, mas é que ainda estava inseguro por tantas coisas. Pensava em como estava sendo chato e indelicado, em como estava sendo tênue demais diante de sentimentos tão consistentes. Mas é que ele não gostava de olhar as conquistas do hoje e ainda assim almejar apenas as de amanhã, não desfrutar, não usufruir. Uns denominavam tal fator como desperdício, mas outros o saboreavam como uma saudável ambição.

Endireitou-se rapidamente e limpou as pequenas lágrimas que insistiam em lamber-lhe o rosto. E então disse:
- Tudo bem, garotas. Acho que enfim estou pronto para lhes contar. Mas é que eu queria que uma pessoa estivesse aqui para me ouvir, pra falar com vocês também porque eu sei que como eu, vocês não a vêem há muito tempo. Vocês ficam aqui um pouco, vou lá em cima, ela deve estar no meu quarto.
- Ok Christopher, mas quem é essa pessoa? – Indagou Konstantine.
- Ah, é a Sophie! Lembram dela?
Parecia que o coração de Konstantine tinha sido colocado embaixo de uma ducha fria, mas ela não deixou transparecer, apenas dançou com um sorriso maroto em seu rosto. E então ela olhou nos olhos de Emilie e soube que ela também estava pensando o mesmo, com a mesma veemência, com o mesmo pesar.
Ambas olharam para Christopher com ar de satisfação e disseram em uníssono:
- É claro!
- Então vou lá buscá-la, me esperem aqui!
Sorrindo forçadamente elas esperaram que ele sumisse de suas vistas, quando apenas ouviam a voz de Christopher chamando por Sophie pelos cômodos do andar de cima. Konstantine enfim falou:
- Eu pensei que ele soubesse.
Com ar pesado, Emilie constatou:
- Mas ele sabe, só não quer se lembrar.



Continua...

Ao som de “O Porto”, Agridoce.