terça-feira, 11 de setembro de 2012

O Fantasma



Pairava a dúvida sobre a cabeça dos que ali habitavam. No momento em que o sol se punha, a mesma ladainha se desenrolava. Esperando o momento em que as últimas luzes do dia arroxeavam-se no horizonte, ele sempre acendia uma vela. Sabia que se ela ardesse azul, isso seria algo inteiramente diferente, não é sorte alguma, pois significa que há um espírito na casa. E se a chama bruxulear, depois se tornar mais forte a cada vez que a vela é acesa, o espírito está instalando-se. Sua essência está enroscando-se nos móveis e nas tábuas do assoalho, está reivindicando armários e guarda-roupas e, em breve, estará chacoalhando janelas e portas.
Às vezes leva bastante tempo para que alguém na casa perceba o que aconteceu. As pessoas querem ignorar o que não conseguem compreender. Procuram a lógica a qualquer preço. Uma mulher pode facilmente pensar que é tola o bastante para não se lembrar de onde guardou os brincos a cada noite. Ela pode convencer-se de que uma colher de pau extraviada é a razão por que a máquina de lavar louça está constantemente entupindo, e que o banheiro não pára de alagar devido a canos defeituosos. Quando as pessoas se provocam, quando batem portas umas na cara das outras e se xingam, quando não conseguem dormir à noite devido à culpa e aos maus sonhos, e o próprio ato de se apaixonar deixa-as nauseadas em vez de atordoadas e alegres, então é melhor considerar toda causa possível para tanta má sorte.
Já naquelas noites ele estava evitando dormir. Seus sonhos tornaram-se demasiados realistas e como se não bastasse se tornavam realidade no decorrer do dia. Pequenas premonições, manifestações clarividentes, avisos. Diminuíam o impacto causado pelas doses miúdas de decepção, mas é claro, não evitava que as mesmas tivessem efeito. A mescla do cansaço, do desencontro, da espera e do receio estava sendo servida todos os dias no desjejum; no almoço; para o lanche das horas vagas e requentada no jantar.  Alguns amigos especiais dividiam as iguarias com ele, por vezes até anjos se sentavam a mesa, cantavam na cozinha depois de vigiar todos os cômodos da casa a pedido dele.
Decidiu ele que se encontraria com o fantasma, que perguntaria de onde ele veio e porque cargas d’água se instalara ali, com todas as manifestações, ectoplasmas, arrepios e calafrios. Reparou que o crepúsculo avançava; que as sombras se deitavam e que no arquejar do dia, uma fresta fugidia do sol poente se sentava em sua cama, acentuando o aroma de lavanda que enchia o cômodo e continuava a pairar ali por toda a noite. Foi para o quarto e se sentou, encostou-se a cabeceira e esperou que na dita hora o espectro adentrasse o local e começasse mais uma vez as suas danações.
Obsevou a réstia de luz tremeluzente, meio azulada e trêmula sobre os seus lençóis, deitando um iluminar matreiro e abastado de preocupações. Bem aos pouquinhos foi sentindo seus pêlos arrepiarem-se, foi sentindo certo frio se espalhar na espinha, certo ardor de adrenalina nas maçãs de seu rosto. Ele estava chegando, percebeu. Concentrou-se no resto de dia que se derramara em sua cama e então sentiu o menear do colchão, viu a espuma aprumar-se embaixo de um peso supostamente inexistente. Sem saliva, lambeu os lábios em vão. Viu, a sua frente, formas tênues desenharem cores e formatos no ar.
Como se um espelho tivesse sido posto aos pés da cama de modo a refletir-lhe, pôde ver a si mesmo sentado a beirada da cama, encarapitado, olhando fundo e forte em seus próprios olhos. Nem as andorinhas com seu alvoroço de fim de dia cantaram lá fora. Tudo o que ele ouviu foi o ranger do estrado da cama com o novo peso que se sentara sobre ele. O ser aproximou-se, esvoaçante, etéreo. Olhou o seu igual com espanto de uma distância que permitiu fazer com que o ar que os separava zumbisse de embaraço e admiração e então sentenciou, com pesar e compaixão na voz:
- Meu Deus... Como pode existir coisa mais real do que um fantasma?

Ao som de "Flor da Noite", Nana Caymmi.


2 pessoas se inspiraram:

Bruninha disse...

Misterioso, envolvente e sensível
Meu lindo, suas palavras me arrepiaram...^^
Bjos.

Anônimo disse...

Um espectro de si mesmo ... assustador, porém incrível *-*
Mas afinal qual dos dois é o fantasma ?
;)