Como fazia
sempre nas noites de lua cheia, dirigiu-se para a varanda, a fim de tocar seu
violoncelo enquanto tentava acompanhar os sons da noite. Fechava os olhos
imaginando aquela figura terna e ao mesmo tempo muito intensa adentrando sua
casa, desmistificando a mesmice, afastando as sombras que se instalaram naquele
lugar.
Há dezoito
anos morando ali, sentia como se fosse apenas uma extensão da mobília, do chão
de linóleo que nunca precisava ser lustrado ou mesmo do cheiro das roseiras que
estavam na porta há tanto tempo que pareciam ter nascido ali por conta própria.
Agora, naquele momento, enquanto as notas chorosas evanesciam das cordas do instrumento,
ele se lembrava das pessoas que restaram.
Já foram
muitas as especiais, mas estas se perderam no tempo ou simplesmente ficaram
para trás. De certo modo ele se lembrava também de quantas pessoas se julgavam
peculiarmente especiais, mas sabia que elas não o eram, ainda que pensassem o
contrário.
Mesmo se
julgando rabugento, se impressionara por nunca ter perdido a capacidade de
sorrir, de sonhar e persistir. Gostava de se sentar em sua velha poltrona perto
das janelas de vidro verde enquanto observava as pessoas passarem pela porta de
sua casa, rente a cerca de madeira branca. Àquela época seus lilases cresciam
demasiadamente, em descompasso total com seu tempo de flora e, além disso,
apresentavam flores jamais vistas, sendo purpúreas ao centro, arroxeadas nas
extremidades e pareciam ter luz própria. Sua presença e sua casa geraram lendas
e boatos desde que se instalara ali. Não tardou para que as misteriosas flores
atraíssem os jovens que vinham com o intuito de rogar por amores abaixo dos
galhos frondosos e repletos de perfumados lilases. Certa vez teve a
oportunidade de assistir a um casal que depois de se coroar com aquelas flores,
proferiram ali mesmo seus votos de casamento.
“Feitiçaria”
uns diziam, “fenômeno biológico” outros atestavam, “ele as rega com sangue”
cochichavam as velhas da viela. Ele apenas se ria e continuava olhando através
dos vidros verdes que transformavam o mundo lá fora em esmeralda. Ele sempre
gostou do status de lenda que lhe foi dado, pois, se ele era lenda, era envolto
em mistérios e magias. Se ele era lenda, poderia correr livre junto ao vento,
buscando as histórias perdidas no tempo. Se ele era lenda, pelo desejo
incontido que há nele, poderia tornar possível o encontro entre a Lua e o Sol,
diminuindo o entrave da dor. Então, sendo lenda poderia cavalgar pelos sonhos, velejar
pelos mares da sua saudade passeando pelo pensamento de quem quer que almeje.
Sendo lenda, poderia brincar nas alegrias de quem o espera, sendo parte destas
emoções caminhando tranquilo pela ilusão, sem medo algum de machucar-se. Sendo
lenda, poderia escrever seu nome na vida de quem quisesse e vezenquando “ser
pra sempre” na vida de muitos.
Às vezes,
junto aos sons da noite, poderia jurar que ouvia o som de notas de piano que
pareciam falar de um amor verdadeiro, pungente e próximo. Seus dedos
enrijeciam, seus olhos se fechavam e ele sentia que aquela quimera iminente era
sua. “Não tem medo da noite?”, lhe perguntavam as crianças por entre as
roseiras acerca de seus passeios na floresta que adornava seu quintal, dando
aspecto de infinitude. “Ela é minha amiga”, respondia ele com os olhos perdidos
em algum pedido que parecia sempre saltar de seus lábios.
Foi naquela
mesma varanda que enfim a noite lhe trouxe o recado que ele esperava há tanto
tempo. Naquela mesma varanda onde fechava os olhos abaixo da lua cheia e
balbuciava para o vento da noite dizendo que ele esperava, que estava ali
aguardando um amor que se curvasse ao tempo, naquela mesma varanda que seu
corpo lançava espasmos no tempo e no espaço da noite, sendo diluídos ao longe
pela brisa dançante. As árvores sabiam, os lilases, sabia ele, estavam floridos
assim, pois avisavam de uma certa chegada.
Como que
feitiço, pôde ouvir galopes na floresta, vento que sibilava certa chegada, amor
que se desprendia das folhagens e acompanhava a figura que adentrava o seu
jardim. Correu para o espelho para se arrumar a fim de receber sua visita de
forma apresentável. Olhou através dos vidros verdes, viu os lilases levitarem
com a rajada súbita. Estava chegando, ele sabia. E então o pequeno portão se
abriu, rangendo timidamente. Adentrou por ele valorosa mariposa, trazendo o
cheiro muito doce e quase irritante das flores que ali cresciam em demasia como
que por feitiçaria, fenômeno biológico ou sangue em suas raízes. Pousou
delicada em seu ombro e naquele instante, observando a escuridão das árvores
entrecortada pelo luar, ele pôde ver os olhos que o miravam dentro da floresta,
sedentos, esperando por ele, mas sem poder se aproximar ainda.
Fechou suas
mãos como um pequeno templo e balbuciou para a mariposa que repousava esperando
entre os seus dedos: “Diga a ele que o espero, que estou aqui e que para onde for
meu coração será dele”.
Liberta de sua
pequenina gaiola, a mariposa de asas frondosas e cintilantes adentrou a
floresta, levando em seu voo a notícia e a certeza da espera de uma chegada.
Sorriu ele,
dizendo para a lua que derramava sua luz prateada, salpicando sua pele de chuva
etérea: “Eu espero pelo amor e agora sei que ele está vindo até mim”.
Ao som dessa belezinha aqui: A Loveless Romantic
1 pessoas se inspiraram:
Linda mon'ami. Soberbamente linda.
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