Os móveis escassos, antigos e
metodicamente envernizados refletiram a luz azulada que repentinamente irradiou
do display do pequeno gravador
digital do investigador Thompson. A sala em penumbra parecia sibilar diversas
coisas ininteligíveis naquele vazio e modorrento fim de tarde. O ranger das
botas emborrachadas que se fazia ouvir todas as vezes em que o homenzarrão a
frente de Christopher encarapitava-se na ponta da poltrona já o irritava. Por alguns minutos, analisando
a figura a sua frente, ele pensou com afinco na dificuldade que o investigador
deveria ter de ser sutil, fator primordial em sua profissão.
Aquele homem era desproporcional.
Ao sentar-se, afundando no estofado, suas calças subiram deixando a mostra boa
parte de suas panturrilhas esbranquiçadas e estranhamente bem definidas. Seus
cotovelos ossudos pareciam querer rasgar o sobretudo que por algum motivo
desconhecido ele se recusou a tirar. Vez
ou outra anotava algumas deliberações e o jovem pôde perceber o quanto suas
mãos eram velhas. Tão lânguidas quanto o resto de seu corpo, pareciam ser
envolvidas por velhas e finas cordas arroxeadas e Christopher se perguntou se algum
dia elas teriam tido viço e destreza. Tinha um rosto bonito, dadas as
características desengonçadas de sua estrutura corporal; o cabelo era cortado
baixo, bem rente e em linha reta, alternando-se em fios prateados e
enegrecidos; tinha olhos complacentes, apesar de toda a dureza que parecia
ostentar. Olhos verdes e complacentes.
As covas sombreadas de seu rosto
davam a impressão de sempre esconder palavras ou um sorriso abrasador.
Christopher chegou à conclusão de que o investigador a sua frente devia seu
status em sua profissão à sua aparência, mas não era nada do que aparentava.
Lendo-o mentalmente, o jovem entendeu que ele era fruto de diversas
circunstâncias desastrosas e que o seu ofício tornara tudo natural para ele,
privando-o de novas surpresas desagradáveis para o resto da vida. Decidiu então
naquele momento que colaboraria com tudo, sem pestanejar. Thompson tinha
adquirido sua confiança.
Emilie e Konstantine decidiram
resolver pormenores, como o pagamento das diárias no hotel não muito longe dali,
o recolhimento de suas roupas na lavanderia e quem sabe até um chocolate quente
no caminho, pois sabiam que o interrogatório seria longo. Naquele momento uma
coceirinha começou a aparecer em seus âmagos e elas sabiam que apesar de longa
e possivelmente enfadonha, a conversa revelaria tantas coisas que o ar ficaria
denso. Tão denso que poderiam parti-lo com uma adaga.
Na sala de estar as sombras se
estendiam de modo vertiginoso pelos cantos e pelo assoalho e Christopher
sentia-se cada vez mais incomodado com o silêncio que tinha se interposto entre
ele e a figura intrépida a sua frente. O investigador curvou-se um pouco, de
modo que um feixe de luz tardia e avermelhada pelos tons da nova noite iluminou
suas retinas arbóreas e as fez brilhar momentaneamente. Em tons baixos e
firmes, Thompson disse:
- Assim que estiver preparado,
Senhor Christopher.
O jovem assustou-se um pouco com
a segurança que aquele homem transmitia e disse, meneando a cabeça para um
canto mais escuro, a fim de esconder sua expressão um pouco amedrontada:
- Tudo bem. – e completou – Só
Christopher, – parando de forma insegura – por favor.
Uma caneca de mel quente fumegava
diante do investigador e ele, impassível, apenas olhava algumas anotações e
alternava uma nova entre um gole e outro. A cada vez que sorvia mais um pouco,
suas sobrancelhas uniam-se, denotando certo esforço para que não queimasse a
língua ou os lábios. Christopher entendeu que ele ficaria ali durante toda a
madrugada, se preciso fosse.
E a noite avançou pelo recinto.
18h30min. Olhares dispersos,
barulho irritante de páginas secas atritando uma contra a outra.
19h00min. O tênis de Christopher
tamborilava e ele se esforçava para lembrar-se de algo, qualquer coisa que
fosse e enfim se livrar da tortura que aquele momento estava representando.
19h20min. O investigador Thompson
não apresentava impaciência alguma, mas dessa vez largara as anotações, jogando
a surrada pasta de couro sintético no chão.
19h30min. Christopher passou a
canalizar toda a sua atenção para o tic-tac do relógio que pendia a frente
deles, sempre solitário na parede simples, de cor creme.
19h45min. Thompson agora se
levantara e olhava o jardim já escuro e sem forma com expressão perdida e
tranquila.
19h50min. Christopher não
entendeu muito bem aquela sensação, mas seu cérebro parecia ter dado um giro.
Sentiu-se tonto e um pouco desnorteado. Afundou-se um pouco mais na poltrona
que rangeu alto às suas costas.
19h55min. Thompson voltou ao seu
posto, sentou-se, mas sempre evitando olhar fixamente para o jovem a sua
frente. Recolheu sua pasta e voltou a fazer anotações aleatórias.
19h58min. O relógio gritava nos
tímpanos de Christopher. Suas minúsculas engrenagens e mecanismos pareciam tiquetaquear
dentro de sua mente. Suas mãos agora apertavam o estofado da poltrona, deixando
manchas escuras de suor no couro rachado e ressecado.
19h59min. O investigador percebeu
a inquietação de Christopher, adiantou-se, preocupado. Ajoelhando-se e
colocando a mão sobre o ombro do rapaz, Thompson o olhou nos olhos e disse, enfim
quebrando o silêncio de duas horas e meia:
- Fique tranquilo, Christopher.
Que quer que tenha acontecido, eu estou aqui para ouvir. A partir de agora esse
lugar é uma espécie de forte, nada vai sair dessas paredes. E o melhor: esse
lugar é seu. – disse o investigador em sentenças rápidas, de modo que nenhuma
insegurança eventual pudesse preencher qualquer lacuna deixada por falta de
atenção.
Respirando fundo, Christopher relaxou
um pouco mais os músculos, mas de repente enrijeceu-se novamente levantando os
pés a alguns centímetros do chão de linóleo.
20h00min. Nitidamente Christopher
ouviu a voz de Sophie sussurrar em seu ouvido, com hálito doce e o tom jocoso
de sempre, dizendo: “Vamos?”.
Quando um trovão rouco soou ao
longe, Christopher segurou o antebraço do investigador Thompson e disse, de
forma clara, firme e concisa:
- Eu me lembrei.
- Eu queria ser um besouro nesse
momento para ouvir a conversa daqueles dois. – disse Konstantine forçando uma maturidade
que ainda lhe faltava.
- Mas a expressão não diz “ser
uma mosca”? – questionou Emilie de cenho franzido.
- Diz, mas eu acho moscas
nojentas. E de qualquer forma um besouro também se adapta muito bem em todas
aquelas frestas do chão da casa do Christopher. Aliás, que casa bonita aquela,
não é mesmo? Como será que o Christopher conseguiu comprar ela por um preço tão
baixo?
- É, isso eu também não entendi.
A casa é grande, bonita e parece ter uma história notável. Isso é mais um
mistério que ele vai precisar esclarecer pra gente.
Naquele instante uma lufada fria
entrou pela cafeteria enroscando-se nos pés dos clientes e passantes. Um trovão
rouco soou ao longe.
- Nossa, vai chover de novo. Como
tem chovido nos últimos dias e eu adoro isso! – comemorou Konstantine
levantando sua caneca para o céu.
- É porque a gente reencontrou o
Christopher. Das coisas que me lembram do Christopher, a chuva vem em primeiro
lugar.
- Verdade – concordou
Konstantine. – A propósito, você sentiu a mesma coisa que eu? – acrescentou ela
com o tom que sempre usava para disfarçar algo que a assustara um pouco.
- O perfume da Sophie? Senti.
Nitidamente.
- Acho melhor a gente voltar para
a casa do Christopher.
Pagando a conta apressadamente,
ambas saíram trôpegas para a calçada a tempo de ver as luzes se apagando pela
avenida. A queda de energia deixou tudo escuro, dando visão a um céu
avermelhado e furioso.
As nuvens avolumavam-se
ameaçadoramente e pareciam querer tragar tudo. Gradativamente o vento esfriava
e os trovões ficavam mais próximos, alternados por relâmpagos que riscavam o
céu e traziam o dia por alguns segundos, pintando tudo de um branco forte que
parecia cegar momentaneamente e, além disso, a escuridão alternava-se com os
farois dos carros que avançavam pela avenida. Um pequeno caos começava a se
formar e Emilie e Konstantine sabiam que seria difícil conseguir um táxi agora.
Mas, milagrosamente um se aproximou e elas correram abrindo caminho entre as
gotas pesadas e negras que começavam a perfurar suas roupas, como contas
geladas. Desprezaram a velhinha que se aproximava com um persa gordo e
impassível entre as mãos, mas compadeceram-se e pediram para que ela entrasse.
Talvez tivessem sorte e ela nem morasse tão longe da casa de Christopher.
O carro avançou em meio ao
inferninho de farois aglomerados e pedestres em dúvida por conta do semáforo
inútil que não tinha como funcionar sem energia.
- Vai ser uma tempestade e tanto
– disse a velhinha com ar um tanto misterioso enquanto os olhos do persa
preguiçoso e sonolento cintilavam no interior sombreado do carro.
Gregory Thompson nunca foi dado a
irracionalidades ou mesmo misticismos, mas poderia jurar que sentia mais alguém
naquela sala. Tentou captar movimentos mínimos, olhando de forma inexpressiva
para que não denotasse credulidade ou até mesmo, na pior das hipóteses, medo.
Observou Christopher com bastante atenção, focou-se nos mínimos detalhes de sua
expressão e mostrou mais uma vez seu olhar abrasador na esperança de que isso desse
uma ajuda extra nas memórias do jovem que no momento assumira, de fato, uma
postura mais segura e um tanto aliviada.
Christopher lembrara-se de uma
forma realmente inesperada, de acordo com todas as vezes em que tentou, por
conta própria, remontar momentos de meses atrás, não obtendo sucesso algum.
Naquele instante, muitas lacunas foram preenchidas dando lugar a pensamentos e
lembranças claras de acontecimentos que não deveriam ter mergulhado tão fundo
em seu subconsciente, mas que de alguma forma afundaram como pedras.
- Então me conte Christopher, conte-me.
– pediu o investigador munido de caneta e papel, apoiando seu pé sobre o joelho
e equilibrando os papeis sobre sua panturrilha.
- Me deixe falar tudo primeiro,
Thompson. Por favor, não me interrompa. Não quero que nada disso fuja novamente
de meu domínio.
Ansiosas, Emilie e Konstantine
empertigavam-se no banco detrás do táxi, enquanto o carro avançava abrindo
caminho pelo véu gelado que agora se estendia por toda a cidade. A vermelhidão
no céu ficara um pouco mais branda, dando lugar a nuvens castanhas e chorosas,
deslizando preguiçosamente. Ainda não conseguiam distinguir muito bem os traços
da senhora que se sentara no banco da frente, mas tiveram a certeza de que ela
era muito sábia simplesmente pelo seu tom de voz. Até o momento ela ainda não
tinha se manifestado acerca de seu endereço e parecia não se importar muito com
isso, afinal de contas era como se estivesse curtindo um passeio com velhas e
saudosas conhecidas. Quando a rua da casa de Christopher se aproximou,
Konstantine deixou escapar um suspiro de alívio ao avistar a casa imponente se
erguer no escuro, alguns metros adiante. Reparou que apenas uma janela da casa
deixava escapar uma luz bruxuleante, como se velas iluminassem o seu interior.
Pensou então que a conversa ainda avançava e que não devia ter se desenrolado
muito.
O táxi encostou-se ao meio fio, levantando
bastante água que corria com força pela sarjeta. Quando enfim seguraram as
cédulas nas mãos a fim de pagarem a devida quantia pela corrida e então se
prepararem para correr ao velho e pesado portão, a senhora ao lado
manifestou-se:
- Eu também descerei aqui, caro
Jonathan. Ah, moças, dividiremos em partes iguais, tudo bem?
Ambas entreolharam-se e
concordaram rapidamente sem se preocupar com o modo em que aquela senhora
transitaria pelas calçadas sorrateiras abaixo da violenta tempestade.
Preocuparam-se e decidiram ajudá-la, uma vez que não escapariam da água que
preenchia todos os espaços disponíveis com ar fora do veículo. Pagando, as três
saíram com receio da rua que se tornara um rio caudaloso, e quando deram a mão
para ajudar a senhora, ela disse em tom sapiente:
- Vamos a minha casa, ela é aqui
do outro lado da rua.
- Mas... – balbuciou Konstantine
começando a protestar.
- Por favor, vocês sabem que ele
está ocupado – pediu mais uma vez a senhora.
Emilie apenas concordou com o
olhar e enfim decidiram segui-la para o outro lado da rua, equilibrando-se pelo
asfalto que se tornara liso abaixo da corrente de água. O persa estava
extremamente impaciente entre as mãos de sua dona e Konstantine se dipôs a
levá-lo enquanto não chegavam à outra calçada. Finalmente chegando ao portão
simples, a senhora procurou seu molho de chaves e destrancou a fechadura
apressadamente.
- Entrem, depressa – aconselhou.
Emilie e Konstantine olharam para
trás, curiosas e preocupadas, a tempo de ver a silhueta de Christopher
projetada na cortina. Emilie conheceria de qualquer distância aquela posição
que seu amigo assumia quando enfim controlava a desordem de algo: corpo ereto e
a mão direita sobre o ombro esquerdo. Sorriu silenciosamente no escuro. Ele
tinha se lembrado.
Christopher levantou-se,
assumindo assim uma posição que dava a ele ar de triunfo e sabedoria.
Dirigiu-se até a parede próxima com o corpo devidamente ereto e a mão direita
pousada sobre o seu ombro esquerdo. Andou a passos medianos se movimentado pela
sala como um fantasma numa casa antiga, cheia de sombras projetadas pelas velas
chorosas nos castiçais simples e encostou-se a parede próxima. Ao seu lado uma
grande janela dava vista às roseiras e dali ele conseguia distinguir poucas
formas. Entretanto, avistou além do jardim, por entre as frestas do portão, um
farol parar na chuva e ouviu vozes abafadas trazidas pelo vento e entrecortadas
pelo som da tempestade. Esperou soar a campainha, mas as vozes cessaram e
somente o som das gotas arranhando as vidraças voltou a reinar. Por alguns
segundos teve a nítida sensação de que alguém o observava além do jardim,
através da cerca viva. Alguém que o entendia perfeitamente.
Voltando sua atenção novamente ao
interior do cômodo, começou a falar após ouvir o click do gravador do investigador a sua frente.
- Gregory, você poderia trocar o
meu nome e o de Sophie por “Inconsequência” e acrescentar o sobrenome “Sonhos”
– começou ele.
- Eu disse que seria uma
tempestade e tanto – disse a senhora enquanto entregava toalhas felpudas e
cheirando a alfazema para Emilie e Konstantine.
- Será que vai durar muito? –
indagou Konstantine.
- Se bem conheço essas chuvas que
chegam assim, aos poucos, ela vai durar a noite inteira.
Emilie enxugava os longos cabelos
com destreza e sem muita pressa. Sentia-se um pouco cansada e até esfomeada,
mas perguntou algo mais pertinente para o momento:
- A propósito senhora, estamos
aqui e até então não sabemos o seu nome, nem quem é você – disse ela tentando
não parecer ríspida.
- Ah, minhas queridas, mil
perdões! – desculpou-se a senhora de olhos ternos – Que desleixo o meu. Muito
prazer, me chamo Deliverance. – concluiu ela fazendo uma mesura enquanto
colocava as mãos sobre o coração como se cumprimentasse ambas ao mesmo tempo.
Konstantine, que era muito ligada
a nomes, achou que não haveria nome mais apropriado para aquela senhora. Apesar
das circunstâncias no mínimo peculiares em que se encontraram, ela não parecia
nada ameaçadora. No momento em que disse seu nome foi como se o closet em que se encontravam tivesse se
tornado mais aconchegante e era como se suas roupas tivessem começado a secar
rapidamente com o calor que exalava da expressão e do gesto de Deliverance.
- Bonito nome, devo dizer – elogiou
Konstantine.
- Digo o mesmo – completou
Emilie.
- Obrigado, meninas. Muito
obrigado. Vocês devem estar com fome, não é mesmo? Com sorte, antes de sair,
preparei um bolo e agora farei um bom café para nós. Noites chuvosas ficam
melhores ainda com bolo e café. Podem ir até a sala e acender a lareira? Já
chego até lá.
As duas concordaram prontamente
como se fossem mecânicas e enrolando as tolhas em seus ombros dirigiram-se até
a sala onde colocaram algumas toras de pinho na lareira apagada e acenderam com
ânsia, por conta dos dedos já dormentes pelo frio. Sentaram-se e enquanto as
chamas cresciam lentamente e a sala ia sendo iluminada e mostrava detalhes que
só se encontravam em casas de anciãs, avós ou solteironas com gatos.
Um aparador repleto de fotos em preto
e branco, em sépia e de um colorido desbotado, como se fossem uma linha do
tempo ali mesmo, exposta a quem quisesse admirar; pinturas pré-rafaelitas
preenchendo algumas paredes, delicadas e etéreas; uma escrivaninha apinhada de
papeis e livros antigos, que pareciam quase falar; um tapete simples, quase
marfim, estendendo-se pelo chão em frente a lareira que nesse momento servia de
descanso para o persa gordo e sonolento que precisava terminar sua secagem e
enfim tirar o sono que parecia adorar. Interrompendo a admiração pelo lugar,
Konstantine disse:
- Ok, ok... Tenho certeza que não
sou só eu que estou achando tudo isso muito estranho, mas pelo amor dos deuses,
quem é essa mulher?
- Sei tanto quanto você, Konst –
balbuciou Emilie com receio de que fossem ouvidas.
- Ela parece conhecer a gente,
reparou que não perguntou nossos nomes?
- Percebi sim, e estou tentando
assimilar o fato dela ter aparecido bem naquele instante em que íamos pegar o
táxi. Sei lá, essa casa, o fato dela morar aqui, bem em frente a casa do
Christopher, parece ser tudo armado de última hora, sabe? É como se ela
simplesmente tivesse começado a existir nesse momento!
Mas naquele instante outro objeto
chamou a atenção de Emilie. Com as chamas mais altas, a luz refletia-se na
moldura de prata de um porta retrato bonito, que emoldurava uma foto realmente
bela. Deliverance, anos mais nova, estava sentada em uma poltrona e uma criança
muito bonita estava sentada em suas pernas. Ambas sorriam de modo sereno para
frente, como se olhassem dentro da alma de alguém muito especial e Emilie achou
o rosto da criança estranhamente familiar. Apanhou o porta retrato entre as
mãos e aproximou-se da janela para tentar captar alguma luz que não assumisse
tons avermelhados. No exato momento um relâmpago desenhou-se no céu inundando
de luz branca o aposento e mostrando as cores reais do retrato. O vestido
delicadamente rendado e branco de Deliverance, as roupas da criança em tons
lilases e brancos e acima do etéreo sorriso, olhos fortes e verdes. Ambas
tinham os mesmos olhos e pareciam compartilhar do mesmo viço, da mesma espécie
de magia.
- Encontrou minha foto e a de
minha neta, Emilie? – indagou Deliverance da porta com uma bandeja entre as
mãos.
Konstantine sobressaltou-se, mas
se manteve no mesmo lugar, um pouco apreensiva demais.
- É uma linda foto Deliverance,
mas, me diga... Como sabe o meu nome?
- Eu também sei o de Konstantine.
A morena de melenas violetas
assumiu uma expressão séria, como se estivesse em uma reunião com o juiz da
comarca.
- Poderia me responder como? –
indagou Konstantine de forma invocativa.
- Mais uma vez eu peço desculpas
a vocês por todo esse incômodo e esse mistério inoportuno, mas, vamos,
esquentem-se com o café e o bolo, sei que devo explicações a vocês.
31 de outubro de 2008...
O charmoso Oldsmobile tossiu quando se aproximou da calçada e então
apagou. Christopher se sentia um pouco tenso, não gostava de viajar a noite e
ainda mais debaixo daquela tempestade que estava chegando. Ele podia vê-la
avançando mansa por sobre os montes no limite da cidade e isso queria dizer que
duraria a noite toda, sem trégua, resultando em estradas lisas e traiçoeiras.
Ele realmente não sabia para onde iriam, não sabia realmente qual eram os
intuitos daquela fuga, mas entendia que ela significava realmente muita coisa.
Talvez até boa parte do futuro de ambos.
Avançando pelo caminho gramado, o jovem pensava se não deveria sair
dali e apenas telefonar dizendo que passara mal, que aquilo estava lhe dando
comichões, mas Sophie jamais o perdoaria. Como que por adivinhação, ela abriu a
porta empolgada, alerta a todas as possibilidades que um mundo inteiro a frente
poderia oferecer. Com destreza arrumara suas malas muitas horas antes com o
intuito de não perder mais tempo algum naquele lugar, com aquelas pessoas, com
aquelas questões que nunca se desamarravam, com a mesma superproteção, com a
mesma desconfiança, com os acessos de fúrias seguidos de bofetadas e portas
trancadas por horas a fio. Ela estava disposta a deixar seu pai para trás, sabia
coisas demais sobre ele e isso a perturbava todos os dias e noites de sua vida.
Ele sabia de sua ciência e por isso ela teria de fugir, ela teria de ser
esquecida, teria de enfim, desaparecer.
Mas, como tudo para Sophie, desaparecer tinha um significado diferente.
Para ela, despir-se de medos, traumas e raivas era o ato propriamente dito de
desaparecer, pois esta tríade representava o resumo de seus dias nos últimos
anos naquele lugar, após a morte de sua mãe. Sentia falta dela, muita falta.
Certificou-se mais uma vez de que aquele velho porta retrato estava em sua
mochila envolto em uma sacola de cetim roxo, delicadamente bordada com o
sobrenome “Bartlett” em linhas cintilantes e prateadas. Era uma foto de sua mãe
e naquele momento Christopher aproveitou para apreciar aquele retrato mais uma
vez. Desde a primeira vez que o viu, ele se encantou com a beleza da mãe de
Sophie. Aquela foto traduzia perfeitamente a personalidade daquela balzaquiana:
etérea, virginal, envolta num ar místico. Assemelhava-se a uma pintura sacra.
Um anjo sem asas, para melhor exemplificar. Como se chamasse a si mesma de
volta para a realidade, Sophie apanhou as chaves em suas mãos e trancou a porta
depressa, como se cada componente do chaveiro de prata estivesse queimando seus
dedos. Ambos desceram em silêncio os poucos e pequenos degraus que levavam ao
mal cuidado jardim e então ela arremessou o molho longe, expressando repulsa.
Fechou o portão com estrondo, mas ainda assim não conseguindo perturbar a
quietude que se instalara na rua, como se tudo estivesse em expectativa para
desaparecer embaixo da tempestade que se aproximava.
Gradativamente, Christopher ia
enfileirando os fatos em sua devida cronologia. Impressionou-se com os detalhes
que agora se mostravam tão nítidos, fazendo-o questionar se isso estaria
acontecendo por conta de todas aquelas lembranças terem ficado guardadas de um
modo tão velado, quase inexistente. Mas, por hora, o que lhe chamava atenção
eram as expressões que o investigador Thompson assumia a cada passo da trajetória
narrada daquela noite a quatro anos atrás. Em uma parte reservada de sua mente,
Christopher começava a se perguntar se todo aquele interesse e atenção integral
voltada a tais questões eram apenas mero ócio do ofício. Entretanto, o que lhe
falava mais alto naquele momento eram as lembranças que desfilavam diante de
seus olhos, mais uma vez organizadas, como que catalogadas e em fila indiana.
Elas apenas pediam gentilmente que fossem narradas, lidas, interpretadas e
resolvidas. Fechou os olhos, ouviu a chuva ao longe, esperou que uma imagem se
formasse diante de suas pálpebras cerradas e então continuou a narração.
- Uau! Eu não acredito que a Emilie e a Konstantine nos emprestaram o
velho e lindo Oldsmobile! – saudou Sophie, empolgada.
- Ele também é meu, Sophie. Lembra que eu dei a maior parte do lance no
leilão? Foi mesmo uma sorte acharmos esse carro e ainda por cima exatamente no
dia em que consegui uma ótima grana. - lembrou-se Christopher com saudade daquela
noite em que festejaram até cair por conta da barganha adquirida.
- Se esse carro falasse hein, mocinho? – brincou Sophie enquanto
simulava um soco no ombro do rapaz.
O sorriso que se formara nos lábios de Christopher esmaeceu lentamente
quando ele olhou para trás e assim analisou os prédios próximos, as casas que
subiam colina acima, as ruas sinuosas que se perdiam a cada esquina escura e
pouco convidativa. Ele estava esboçando uma despedida, embora não se importasse
muito, afinal de contas sempre partilhara do sentimento profundo de se afastar
dali e não pisar os pés nunca mais naquele lugar.
Perceberam que até aquele momento ambos estavam se ocupando de uma coisa deveras dispendiosa: procuravam todos os dias por uma transformação que os tornasse um arremedo de si mesmo, a ponto de nem se reconhecerem mais. Momentaneamente se sentiam como se tivessem 130 anos repousados de forma incômoda sobre os seus ombros e isso definitivamente não estava nos planos de nenhum dos dois. Agora entendiam com clareza que a desordem é tenaz. Todos os laços, todas as amarras, os controles e pretensões... Nada adianta se o vento não soprar. Era isso o que eles fariam: abririam as janelas da alma para deixar que a brisa entrasse com destreza e determinação. O vento que então enfurnaria suas asas seria a sua alforria daquele mundo. Eles sabiam que era alto, mas iriam pular. Perguntavam-se o que é que todos iriam dizer e aonde eles chegariam, mas essa era uma resposta que nem os olhos podiam ver... Decididos, não voltarão para casa, para o lar, para o corpo e todas as palavras que a vontade conseguir pensar.
Perceberam que até aquele momento ambos estavam se ocupando de uma coisa deveras dispendiosa: procuravam todos os dias por uma transformação que os tornasse um arremedo de si mesmo, a ponto de nem se reconhecerem mais. Momentaneamente se sentiam como se tivessem 130 anos repousados de forma incômoda sobre os seus ombros e isso definitivamente não estava nos planos de nenhum dos dois. Agora entendiam com clareza que a desordem é tenaz. Todos os laços, todas as amarras, os controles e pretensões... Nada adianta se o vento não soprar. Era isso o que eles fariam: abririam as janelas da alma para deixar que a brisa entrasse com destreza e determinação. O vento que então enfurnaria suas asas seria a sua alforria daquele mundo. Eles sabiam que era alto, mas iriam pular. Perguntavam-se o que é que todos iriam dizer e aonde eles chegariam, mas essa era uma resposta que nem os olhos podiam ver... Decididos, não voltarão para casa, para o lar, para o corpo e todas as palavras que a vontade conseguir pensar.
- Ei... – chamou Sophie com voz cálida e segura – Tudo vai ficar bem,
eu prometo.
- Engraçado, sinto como se fosse eu quem devesse estar falando isso...
- Ai, deixa de ser machista, cara! Me deixa pegar as rédeas de tudo
pelo menos agora!
- Ei, ei, ei! Nada de estresse agora, ô Senhorita Dedo Pulos! – brincou
Christopher fazendo cócegas no nariz de Sophie.
- Cala a boca, Leves Mãos! – disse ela entre gargalhadas, abraçando-o.
Aproximando-se, ambos prometeram em suas mentes, olhando-se nos olhos,
que tudo realmente ficaria bem. O forte abraço que se seguiu foi um dos mais
puros, seguros e libertadores dos últimos tempos. Eles precisavam daquele
momento, daquela fuga, daquele desaparecimento.
Adentraram o carro e sentaram-se conforme a exigência de Sophie: ela
dirigiria. O Oldsmobile avançou pela rua, deixando para trás todo um passado
que merecia ser enterrado. A todo o momento, ambos prometiam para si mesmos que
tudo ficaria bem e que agora nada representaria impedimentos.
- A propósito Dedo Pulos, qual o nome do seu pai mesmo? Você sabe, não
costumo gravar o nome de pessoas que não vejo com frequência...
- Nem eu o vejo com frequência, Christopher. Ele deve estar trabalhando
num caso agora, por isso o tenho visto com menos frequência ainda. Ah, o nome
dele, não é?
- Sim. E o que ele faz mesmo?
- Ele é um investigador particular agora, mas já trabalhou de perto com
a perícia no departamento de polícia da cidade e de alguns estados vizinhos. O
nome dele é Gregory, Dedo Pulos! Já disse mil vezes... Gre-go-ry Thomp-son,
quer que eu soletre?
- Engraçadinha! Fica quieta, presta atenção na estrada.
Enquanto Christopher aumentava o volume da música e Massive Attack preenchia
todos os espaços vazios do carro, lá fora as gotas também reivindicavam seu
espaço musical. Uma cortina densa e gelada estendeu-se por toda a cidade e
enquanto isso o destino de Christopher e Sophie se aproximava cada vez mais.
Ambos sentiam a chuva se adensar, mas aquilo realmente parecia não importar.
Alternavam a atenção à estrada entre brincadeiras e lembranças do ensino médio,
cantavam as músicas que iam tocando de forma aleatória. Embora tranquilos, algo
ainda latejava na consciência de Christopher, inquietando-o vez ou outra, como
espasmos de preocupação. Observou com tanta atenção os desenhos sinuosos que a
chuva pincelava no para-brisa que terminou por dormir, mergulhando em sono
inquieto. Minutos depois uma claridade inoportuna incomodou seu sono e ele
abriu os olhos, pouco satisfeito. Pôde diferenciar em meio à chuva dois farois
que avançavam metros atrás do Oldsmobile, abrindo caminho entre as gotas
pesadas e ininterruptas, que caiam como correntes.
- Mas que droga, esse infame não sabe abaixar o farol, não?
- Christopher, – chamou Sophie com um tom sério demais. – é ele.
Entendendo imediatamente, ele indagou:
- Vamos parar Sophie, a gente conversa civilizadamente com ele.
- A última coisa que eu vou fazer é parar. Quero esse assassino longe
da gente!
Ao pronunciar aquela palavra que
até então estava entranhada em suas memórias, Christopher arrepiou-se. Fechou
os olhos longamente a fim de não encontrar os de Gregory, que tremia levemente
a sua frente, curvado, apoiando os cotovelos nos joelhos e com as mãos juntas
abaixo do queixo, como se formassem um pequeno templo ou uma pequena gaiola.
Prosseguiu.
- Isso é imaturo, Sophie! Por favor, vamos parar e ver o que ele tem a
dizer!
Naquele instante os pneus do carro vacilaram e então o Oldsmobile
começou a ser sacudido por pequenos solavancos que elevavam ambos em pequenos intervalos.
Intercalando-se com o forte tamborilar da chuva, eles podiam ouvir o som das
vigas de madeira da ponte na qual havia adentrado.
A escuridão era ameaçadora. Colando o rosto no vidro para vencer a
condensação, Christopher tentava enxergar dos lados e além, mas tudo era apenas
um manto negro que cintilava em mil estilhaços gelados iluminados pelo farol do
antigo carro. Por algum motivo ele achou que aquele caminho era errado, que
aquela ponte era perigosa demais para uma noite como aquela. Olhou para Sophie
e esta parecia ter se fundido às engrenagens do carro. A estrada a frente era o
seu mais voraz objetivo, em seus olhos estava injetada uma raiva que
Christopher jamais havia visto. E ela acelerou ainda mais. Ambos foram
sacudidos com mais violência, elevando-se a alguns centímetros do banco. Abaixo
dos pneus as vigas ribombavam ameaçadoras, como se fossem se soltar a qualquer
instante.
- Eu não vou parar, Christopher! Eu não posso, eu parei a minha vida
por ele até agora, eu preciso ir embora!
As mãos de Christopher estavam geladas, e então ele procurou abrigo
entre as dobras que a blusa de Sophie formava. Um riso débil escapou de seus
lábios com o repentino carinho, mas não amainou sua fúria perante a estrada. Os
farois que vinham logo atrás estavam a poucos e intimidadores centímetros,
forçando-os a parar. “Ela jamais se entregará”, percebeu Christopher. Então
começou a entender que teriam de surgir medidas rápidas e drásticas. Começou a
entender que, a partir dali, começaria a ter de cultivar o desapego rápido e
indolor.
- Christopher! – chamou Sophie com a voz trêmula.
- Sim? – respondeu Christopher mais seguro do que ela pensou que ele
estaria.
- Eu te amo muito, de verdade.
- Eu também te amo, Sophie, mas, que é que está acontecendo?
- Me promete uma coisa?
- Me diz o que é primeiro, por favor...
As tábuas continuavam vacilando e o veículo logo atrás simplesmente não
esboçava trégua alguma.
- Essa ponte não tem saída, ela está inacabada.
- Então é melhor pararmos, Sophie. – disse Christopher tentando não
fazer com que a calma se esvaísse.
- Vamos saltar, nós vamos conseguir nos livrar dessa!
A verdade é que Christopher não estava arrependido de estar ali.
Vencera muitas coisas para que então pudesse estar indo rumo a um futuro sem
amarras, livre de espectros opressores.
- “Se você pular, eu pulo!”, lembra? – disse ele com um sorriso que
cintilou no interior do Oldsmobile.
- Eu nunca vou me esquecer, nunca!
Sophie apenas dirigiu sua atenção para o ponto em que podia diferir o
fim da ponte, destruída, retorcida, exatamente como estavam muitas de suas
concepções naquele momento. Aquele salto iria reconstruir todas as suas
próprias pontes.
O velho carro não parecia apresentar sinal algum de falência, mesmo com
a longa idade. Christopher pousou sua mão sobre a de Sophie e então apenas
esperou.
Olhou para trás a ponto de ver o outro veículo parar repentinamente.
Apertou a mão de Sophie com força e então prendeu a respiração.
De repente não havia mais o barulho das tábuas e vigas antigas, não se
sentia mais o atrito com o chão acidentado, a música parara de tocar, ambos
flutuavam no tempo e no espaço, indo de encontro à parede gelada e corrente.
Esperaram aqueles longos segundos enquanto suas mentes estavam a mil, fazendo
perguntas em centésimos, ponderando sobre o futuro em milésimos. Não sabiam,
realmente não sabiam. Apenas queriam.
- Antes que me perguntem, eu
também conheço Sophie, a amiga de vocês – revelou Deliverance com voz terna e
sem oscilações.
- Qual é o seu sobrenome, senhora
Deliverance? – perguntou Emilie tentando esboçar despreocupação.
De forma quase inocente e doce,
Deliverance respondeu enquanto enchia uma xícara de café:
- Bartlett. Meu nome completo é
Deliverance Bartlett. Por que?
- Você é a avó de Sophie. – concluiu
Emilie veementemente.
Continua...
Ao som de "130 Anos", Agridoce.
3 pessoas se inspiraram:
amo/sou todo esse mistério escrito. nasss
Saymon, querido, vou acorrentá-lo a uma máquina de escrever pra você terminar logo essa história, seu carrasco perverso e insensível! kk'
ADOREI, ADOREI, ADOREI *-*
Tô com a Dilly e não abro! Mas eu posso lhe acorrentar a um notebook ok? Gente eu MORRI como sempre morro ao ler esse "continua" D: D: D:
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